Mário Vilaça

''... o maior e mais saboroso desafio foi, sem sombra de dúvida, recriar o Fairey IIID “Santa Cruz” à escala.''

Praticante de Aeromodelismo de longa data, tendo percorrido todas as etapas desde o voo livre e voo circular até chegar ao rádio controle, o que actualmente mais me fascina neste desporto/ciência, como alguém classificou,  é o desenho e construção de modelos mais exóticos, isto é, aqueles que saem dos caminhos batidos e que, pelas suas características ou peculiaridades, representam desafios maiores.

Por outro lado, a minha entrada para a Patrulla del Amanecer Española (Spanish Dawn Patrol – Patrulha Espanhola da Alvorada) alguns anos atrás veio colocar-me novos desafios.

Para os amantes da História, a Dawn Patrol era, na Primeira Guerra Mundial, o nome que os Britânicos davam à primeira patrulha do dia, ou seja, os aviões que, de ambos os lados da linha da frente, descolavam ao alvorecer para fazer aquilo a que chamaríamos hoje de patrulhas de interdição (evitar que o inimigo pudesse sobrevoar as nossas linhas e, sobretudo, fotografar as posições das nossas tropas).

A Dawn Patrol do Aeromodelismo foi criada no Reino Unido no final do século XX, com o intuito de preservar a memória desses Cavaleiros do Ar de há um século. Por uma questão de uniformidade, os modelos são todos a uma escala comum de 1/3, o que significa que serão 3 vezes mais pequenos que os originais. Na prática, isso significa modelos com uma envergadura na ordem dos 3 metros.

O meu gosto pelos tais percursos não trilhados levou-me a preferir aviões alemães, cujos esquemas de cores representam um desafio maior para reproduzir e são, para o meu gosto, mais atraentes. Isto é igualmente verdade em relação às suas técnicas de construção, quando comparados com as dos aviões Aliados que eram muito mais “convencionais” neste aspecto.

O meu primeiro modelo na Patrulla del Amanecer foi um Albatros DVa construído a partir dum kit da Wonneberger Flugmodellbau . A palavra “Kit” pode induzir em erro – estes kits são muito básicos, trazem apenas as peças necessárias à construção sem os detalhes de escala ou outros adicionais e são necessárias centenas de horas para, a partir deles, conseguir um resultado aceitável e, em particular, realístico.

Seguiram-se o Fokker Dr1, o triplano imortalizado pelo Barão Vermelho, o Pfalz DIIIa, com a sua peculiar fuselagem muito aerodinâmica feita em contraplacado moldado, o Nieuport 28 c1 utilizado em França pelo Lt Quentin Roosevelt, filho do presidente dos USA, o Nieuport Triplano, um avião que não passou da fase de testes mas que apresentava uma configuração extraordinária de asas,  e o Roland DVIb, em que a fuselagem era fabricada utilizando uma técnica de construção copiada dos barcos Vikings que chegou até aos dias de hoje, e no qual experimentei uma nova técnica para reproduzir as típicas camuflagens alemãs pré-impressas do final da Guerra.

A presença em muitos dos eventos que tiveram lugar na Europa no período 2014/2018, quando se comemorou o centenário da Primeira Guerra Mundial, a publicação/divulgação das construções e voos dos meus modelos em revistas da especialidade, nas redes sociais, assim como em vários fóruns de aeromodelismo um pouco por todo o mundo, tornaram-me num consultor de facto para este tipo de aviões “Dawn Patrol” Alemães, passando por isso uma boa parte do meu tempo livre colaborando, ajudando e comentando o trabalho de vários aeromodelistas desde a Austrália e Nova Zelândia, Américas e em especial, no Continente Europeu.

Mas o maior e mais saboroso desafio foi, sem sombra de dúvida, recriar o Fairey IIID “Santa Cruz” à escala. Porque é nosso e porque é um testemunho “vivo” do maior feito aeronáutico do nosso Povo, a Travessia Aérea do Atlântico Sul (TAAS), levada a cabo por Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Sim. Sacadura Cabral e Gago Coutinho, por esta ordem – Gago Coutinho, o herói sobrevivente procurou sempre repor a verdade sobre o projecto da TAAS – a ideia, o desafio, partiu de Sacadura Cabral que aliciou o seu antigo Chefe das campanhas geográficas em Angola para o projecto.

O desafio foi-me lançado em 2017 pelo meu amigo Carlos Seabra – era preciso fazer alguma coisa para homenagear os maiores heróis da nossa Aviação aquando do Centenário da TAAS em 2022. E essa alguma coisa foi o modelo do Fairey IIID “Santa Cruz” à escala de ¼, escala escolhida devido às dimensões muito superiores do original (14m de envergadura) relativamente aos caças monolugares da 1ª Guerra Mundial.

O nosso objectivo foi alcançado quando, a 11 de Junho de 2022, portanto seis dias antes do centenário da chegada ao Rio de Janeiro, o nosso Fairey 17 “Santa Cruz” descolou da albufeira da Barragem da Aguieira para o seu primeiro voo. Gostaria de acreditar que, se o pudessem ver, os nossos heróis Sacadura Cabral e Gago Coutinho teriam sorrido ao voltar a ver o seu avião a voar.

Mário Vilaça. Junho 2022