Voo Ferry com um Falke SF 25C

Voo Ferry com um Falke SF 25C do Norte da Dinamarca para o Norte de Espanha

O relato que se segue é feito de memória fresca e baseado nos registos dos aparelhos eletrónicos que faziam parte do meu equipamento (não do avião). O relatório irá conter termos técnicos, cuja descodificação irei colocar no final, para aqueles que vão ler e não têm conhecimentos aeronáuticos.

Tudo começou num dia de julho, quando estava com o pensamento longe dos aviões e recebi um telefonema de Espanha de alguém que se identificou como Christian. A pessoa em questão informou-me que tinha obtido o meu número de telemóvel através de outro espanhol, para quem teria feito um voo ferry de França para Espanha. Na realidade, este voo ferry a que o Christian se referia nunca cheguei a realizá-lo e acabou por ser feito por outro piloto, tanto quanto sei.

O Christian estava a contactar-me para saber se podia fazer o ferry de um avião de Norre Felding, no norte da Dinamarca, para Benabarre, no norte de Espanha. A minha resposta foi um redundante sim, tanto mais porque eu estava a planear levar outro avião de Coimbra para Äre Östersund, no norte da Suécia, e aproveitaria para “matar dois coelhos de uma só cajadada”, isto é, levava um e trazia outro de volta. A viagem deveria realizar-se em agosto, quando em Portugal toda a gente vai a banhos e com boas oportunidades meteorológicas para fazer a viagem de ida e volta em 4 ou 5 dias.

Estava decidido.  Eu traria o avião do Christian, e impôs-se a pergunta sacrossanta sobre o modelo do avião. O Christian respondeu-me orgulhosamente que tinha comprado um Falke SF 25 C! Tais palavras martelaram-me o cérebro com força e fizeram soar mil e uma campainhas, porque este seria o terceiro voo ferry com um Falke que eu iria fazer, e os anteriores não deixaram muito boas recordações. O Falke é um motoplanador, construído na Alemanha nos anos 60, em madeira e tela, com várias motorizações, de dois lugares com assentos lado a lado. Este, com a matrícula dinamarquesa OY-TEX, tem um motor de 80 CV e faz uma velocidade de cruzeiro de 140 a 150 km/hora.

Eu já tinha dito que traria o avião e não sou homem de voltar com a palavra atrás, por isso aguentei estoicamente e não denunciei a minha frustração. O avião que iria levar para a Suécia é um Cessna 206 com 300 CV, capaz de carregar 6 paraquedistas equipados, mais o piloto. Mas pensei: quem come a carne também tem que roer o osso, e voar é voar, nem que seja no cabo de uma vassoura.

A partir daí, trazer o Falke tornou-se um desafio, mas como não guardo as melhores memórias, em termos de conforto, das minhas experiências anteriores, posteriormente e sempre que me lembrava, fui pedindo informações. Fotografias do avião? Não tinha mau aspecto! Fotografia do painel de instrumentos? Surpresa, não tinha transponder! Não contive a exclamação: Meu Deus, outra vez, NÃO! Os dois anteriores também não tinham transponder, um porque nunca tinha tido e o outro porque estava avariado. O primeiro, com muita sorte e persistência, conseguimos trazê-lo de uma assentada até Portugal, mas o segundo tivemos que o deixar em Pau, em França, e regressar a Portugal em 14 horas de viagem de autocarro, para ir buscá-lo, (desta vez em linha aérea) 4 semanas depois, com o transponder reparado. Estava decidido, iria buscar o avião sem transponder, ainda tornaria o desafio mais aliciante.

Recentemente, num outro ferry da Amendoeira para Vinon, em França, deparei-me lá com um Falke e fui examiná-lo, já pouco recordado que estava dos anteriores, e ao observar o cockpit lembrei-me que o primeiro Falke não tinha almofadas nos bancos, eram literalmente duas tábuas. Felizmente, as fotografias entretanto enviadas pelo Thomas (vendedor) mostravam umas almofadas confortáveis. Ao menos isso, pensei.

Entretanto, o tempo ia passando e o avião para a Suécia ainda não tinha sido dado apto para o serviço, pela empresa de manutenção, onde estava a ser submetido a modificações para lançamento de paraquedistas. Como o tempo decorria sem previsão de datas para a viagem, a pressão, tanto do vendedor (Thomas) quanto do novo proprietário (Christian), começou a fazer-se sentir, e certamente eles começaram a questionar se eu seria o piloto certo para fazer o voo ferry.

Sem perspectiva da conclusão dos trabalhos no Cessna, propus ao Christian ir na linha aérea buscar o Falke (afinal, o bilhete direto para Billund custava apenas 150,00 euros). O Christian aceitou de imediato a minha proposta e quando percebi que haveria uma janela meteorológica que me permitiria fazer a viagem em dois ou três dias, eu tratei logo de comprar o bilhete Porto-Billund, mas entre a última consulta e à data da nova consulta  o bilhete já custava o dobro. Não queria estar a telefonar ao Christian a informar que o bilhete afinal custava 300,00 euros, por isso decidi ir via Madrid, que custava os mesmos 150,00 euros, mal sabendo no aventura em que me ia meter.

O voo do Porto para Billund via Madrid estava marcado para sábado dia 28.09.2024 às 8:15 horas, chegando a Madrid às 10:15 horas locais, e a minha ligação para Billund era às 12:15 horas. Excitado e entusiasmado com a aventura em que iria embarcar, acabei por acordar às 3 horas da manhã, tomar banho e pequeno-almoço, conduzir os 150 km até ao aeroporto e, às 7:30 horas, já estava na porta de embarque para ser surpreendido com um atraso de uma hora! Fiquei capaz de morrer. A viagem não podia começar pior. Não fiz nada. Esperei pacientemente que chegasse o meu avião vindo de Madrid, que descolou já comigo lá dentro, exatamente com uma hora de atraso. Comecei a fazer as contas e, se não houvesse mais atrasos, iria ter uma hora para desembarcar e correr para a porta de embarque.

Enquanto esperava no Porto pelo embarque, fui tentando fazer os trabalhos de casa, nomeadamente, saber qual o terminal onde chegaria e qual o terminal onde embarcaria. Raios partam! Chego num extremo do aeroporto (T4) e embarco no outro extremo (T1). Tempo de transferência de autocarro? Cerca de 10 minutos! Tenho uma chance em mil, pensei. Começo a traçar um plano para a chegada. Como o meu lugar era o 29, na cauda do avião, e o desembarque é feito pela porta da frente, pensei que iria demorar 10 minutos antes de eu conseguir sair do avião, por isso decidi que, logo que o avião chegasse ao stand, eu levantar-me-ia e correria pelo corredor fora. Assim o fiz, mas infelizmente, não consegui avançar mais do que 4 ou 5 filas de assentos. Todos os passageiros estavam com pressa de sair e parecia terem tido a mesma ideia. O relógio avançava inexoravelmente e eu comecei a perder as esperanças. Aproveitei para ligar ao meu filho para verificar que alternativas tinha se perdesse a ligação.

Eram 11:40 horas quando consegui sair do avião, correndo como se fugisse do diabo e simultaneamente pedindo desculpa em todas as línguas que conhecia. Rapidamente descobri a paragem do Shuttle Bus e entrei de rompante, não fosse ele fechar as portas e eu tivesse que esperar pelo seguinte. Usando o último fôlego de forças, disparei a pergunta ao motorista: “A que horas chegamos ao T1?” O motorista olhou para mim, como se fosse dono do tempo e disse pausadamente : “Primero, buenos días, caballero.” Retorqui do mesmo modo e ele respondeu: “Às 12 horas.” Os 10 minutos pareceram-me uma eternidade, mas às 12 horas estava a correr no T1 para o controlo de bagagem, furando todas as filas e pedindo desculpa, sempre na expectativa de aparecer algum simpático que me mandasse para o fim da fila. No controle, eu pedi às 4 ou 5 pessoas que já lá estavam que me deixassem passar à frente, e elas simpaticamente acederam. Quando a bagagem chegou do outro lado, agarrei em tudo, meti debaixo dos braços, a segurar as calças com uma mão (não havia tempo para colocar o cinto) e corri para a porta de embarque C42, que não conseguia encontrar. Perguntei a um funcionário que acabou por me dar a direção errada, levando-me ao controlo de passaportes, o que não era necessário porque a Dinamarca faz parte do espaço Schengen, por isso estava a correr na direção errada.

Coloquei asas nos pés e corri na outra direção enquanto rejeitava uma chamada do meu filho. Finalmente, cheguei à porta de embarque… fechada, mas onde ainda estavam duas funcionárias. Completamente exaurido e sem conseguir articular palavra, uma das funcionárias, percebendo que eu estava prestes a sucumbir, pediu-me apenas o BI, enquanto a outra metia a chave para abrir a porta. Voltei a ganhar fôlego. Afinal, ia conseguir apanhar a ligação. Descomprimi e abri a guarda. Agradeci e voltei a correr os restantes 30 ou 40 metros até à porta do avião. Já dentro do avião, com passageiros ainda de pé, aproveitei para pôr o cinto nas calças e organizar as minhas coisas. De repente, ocorre-me: O MEU TELEMÓVEL? Proferi um chorrilho de impropérios enquanto procurava desesperadamente o telemóvel e lentamente percebia que só agora iam começar os meus verdadeiros problemas. Não tinha o número do Thomas, nem do Christian, apenas o número do meu escritório nos meus cartões de visita. Já mentalizado da minha precária situação, consolou-me o facto de saber que ia ter 3 horas de viagem para traçar um plano. Mesmo assim, tentei explicar à assistente que me tinha aberto a porta de embarque, que entretanto tinha vindo entregar uns documentos, a situação em que me encontrava, mas nada a fazer. Prestes a fecharem a porta do avião, quando apareceu uma assistente com o telemóvel na mão. Garantidamente, todos os meus anjos da guarda no céu estavam de serviço naquele dia, o que me deixava antever uma grande viagem. O Thomas foi buscar-me ao aeroporto e, como ainda havia muita luz, levou-me a conhecer o Centro de Voo-à-Vela Dinamarquês, com a sua coleção de planadores oldtimer, alguns únicos no mundo e todos com certificado de voo.

Comprámos pizza, que degustamos nas soberbas instalações do AeroClube de Norre Felding, onde o TEX esteve vários anos sediado.

O Thomas é um profissional de Manutenção Aeronáutica que, antes de me apresentar o avião, fez questão de me mostrar todos os documentos e os espaços onde fazem as manutenções, tudo organizado e devidamente identificado, o que faria inveja a qualquer organização profissional. Ainda sem ver o avião, tinha a certeza de que estava como um relógio suíço, por isso não me surpreendeu quando tomei contacto visual com o aparelho.

De sábado para domingo, pernoitei nas instalações do Aeroclube e aproveitei para me familiarizar sobretudo com o cockpit, que, embora espartano, tem alguns procedimentos sequencialmente definidos. Enquanto o sono não chegava, preparei e submeti o meu plano de voo para o dia seguinte, em função da previsão meteorológica. Dormi como um anjo e, à hora combinada, o Thomas apareceu com o meu pequeno-almoço.

Fomos ver a pista, já com o TEX na placa de estacionamento, porque uma zona estava alagada, mas a zona seca permitia descolar e aterrar, se necessário. O motor tinha um funcionamento redondo e sem vibrações, o que deixava prever um fiel companheiro durante os 2.000 km que se estendiam à nossa frente. O teto de nuvens estava relativamente baixo, mas a visibilidade era superior a 40 kms, com algumas zonas bem definidas de aguaceiros moderados. Contornar os aguaceiros ia-me obrigar a entrar em espaços aéreos controlados e como não tinha transponder e a visibilidade era boa, (mesmo dentro dos aguaceiros era superior a 10 kms), decidi atravessá-los.

Rapidamente percebi que não tinha sido uma boa ideia, pois a água entrava através do aro da canopy  e da fuselagem e caía-me nas pernas. Embora tivesse o aquecimento da cabine ligado, a água era muito fria (a temperatura exterior deveria rondar os 8 a 10 graus). Pensei rapidamente numa solução e acabei por pegar no meu kispo que tinha atrás do meu banco e colocá-lo sobre as pernas. Problema resolvido!

O motor continuava a funcionar redondinho, como um mecanismo de relógio, e a planície dinamarquesa desenrolava-se à nossa frente e por baixo de nós enquanto o Falke indicava uns orgulhosos 150 km/h de VAI e 165 km/h de VT. A paisagem era magnífica e inspirava segurança (todo o país é uma pista, fruto de uma cultura agrícola ao longo de séculos, não muito diferente da pista de onde tinha acabado de descolar), o que me permitia conhecer e consolidar a confiança no aparelho, pois sabia que iria enfrentar paisagens agrestes e pouco amigáveis.

A perna até Karlshöfen (EDKW) na Alemanha era de 348 km.

O FIS e o ATC de Copenhaga, com quem tinha estabelecido contacto, apesar de eu estar a voar espaço aéreo não controlado, para a eventualidade de ter que emitir um Mayday, limitavam-se a responder com um lacónico “MANTENHA A MINHA FREQUÊNCIA” e o voo prosseguia monotonamente, não muito diferente de estar num sofá em frente à televisão, sem turbulência e com visibilidade infinita. Decorridas 2,15 horas e depois de percorridos 348 km com uma velocidade média de 154 km/h, aterrei em Karlshöfen, onde fui calorosamente saudado.

A primeira perna estava concluída e tinha corrido conforme o planeado ao longo de semanas. Piece of cake!

Abastecimento self-service, paguei a taxa de aterragem (€5,00) e ainda tive direito a uma água, cortesia do aeroclube local. Novo planeamento e, 45 minutos após a aterragem, estava a descolar de novo sem destino certo e sem plano de voo.

Perna de Karlshöfen para aeródromo incerto.

A partir de Karlshöfen, a meteorologia estava mais difícil, se não completamente marginal, com a agravante de que o terreno ia elevar-se, obrigando-me a mínimos de 4.000 pés de altitude. O meu objetivo era chegar a Siegerland (EDGS), mas o mais provável era ter que alternar para um aeródromo intermédio. Logo após a descolagem, tive que me desviar para a esquerda da minha rota para evitar uma célula com aguaceiros fortes e, passados 30 minutos, pude retomar a minha rota, desta vez desviando para a direita para evitar outra célula completamente fechada. Toda a viagem foi um constante compromisso de altitude, rumo e meteorologia. Felizmente, não havia turbulência e a visibilidade era superior a 20 km. Depois de 310 km percorridos em 2,17 horas de voo, com uma velocidade média de 135 km/h, aterrei em Siegerland, onde, de novo, fui calorosamente saudado pelo AITA com um “Bem-vindo a Siegerland”, que repetiu na despedida: “Obrigado pela visita a Siegerland”.

Siegerland não tem abastecimento self-service. A operação de abastecimento é feita pelos bombeiros, cuja bomba está ao lado do quartel, que simultaneamente cobram a taxa de aterragem.

Perna de Siegerland para Offenburg (EDTO)

A partir de Siegerland, a meteorologia melhorava substancialmente até à fronteira de França, o que me permitia fazer uma rota direta. Em termos de espaço aéreo, só na região de Frankfurt me obrigava a descer abaixo de 3.500 pés. Como não tinha transponder, o FIS limitava-se a pedir-me para manter a sua frequência e, esporadicamente, pedia a minha posição, mais com o intuito de saber se ainda estava a voar no setor dele do que por qualquer outra razão. Nesta perna, o meu objetivo era aproximar-me o mais possível de uma frente com chuva e ventos fortes, que estava sobre França e a deslocar-se para nordeste, ou seja, na minha direção, na esperança de que ela passasse durante a noite para me permitir continuar no dia seguinte. Por isso, tinha como objetivo aterrar em Offenburg, ou em Lahr.

Lahr é um aeródromo muito impessoal, virado para os Jatos de Negócios, onde já aterrei e não gostei, por isso a minha preferência era Offenburg, que ainda não conhecia.

À medida que me aproximava de Offenburg, a turbulência começou a aumentar para média/severa, provocada pelo vento forte de sudoeste ao encontrar a elevação do terreno da Floresta Negra. Tentei consultar a página de informação administrativa de Offenburg, mas a turbulência tornava impossível a leitura do texto. No entanto, consegui perceber que havia um PPR. Depois de contactar a frequência, foi possível obter o PPR, que afinal se aplicava apenas ao período das 12 às 14 horas e garantir o abastecimento e a pernoita.

Quando aterrei, fui saudado pelo Wendelin Hug, que nunca mais me abandonou, ajudando-me a abastecer, a ancorar o avião e só me largou em frente ao hotel.

Por sugestão de outros pilotos no aeródromo, reservei um hotel junto à estação de comboio, com acesso também à rede de autocarros, o que me daria mais mobilidade caso fosse forçado a ficar ali mais do que um dia. Embora o Wendelin conhecesse Offenburg, não sabia onde era o B & B Hotel, por isso indiquei-lhe o caminho, cuja rua, mas sem o número de porta, eu tinha introduzido no Google Maps.

Supostamente, chegados à rua, não encontramos o hotel, pelo que fiz nova pesquisa, mas desta vez procurando “B & B Hotel” e, afinal, era a 1,5 km. Finalmente no hotel, a recepcionista não encontrava a minha reserva e, depois de lhe mostrar a confirmação, ficou claro que estava no hotel errado e teria de percorrer a pé os mesmos 1,5 km que tinha feito anteriormente de carro com o Wendelin. Bem jantado, nessa noite não voltei a consultar a meteorologia ou a fazer qualquer planeamento. Dormi com a janela semi-aberta dando para ouvir a chuva a cair com alguma intensidade, enquanto pensava no meu fiel amigo de madeira e tela que detesta tanto a chuva como eu.

Cedo de manhã, continuava a chover, por isso tomei o pequeno-almoço sem pressa e comecei a analisar as hipóteses que tinha para sair dali a voar. As perspectivas eram risonhas a partir das 10 horas locais. Submeti o plano de voo para as 9 horas UTC, 11 horas locais, e pus-me a caminho a pé para percorrer os 500 metros até à paragem dos autocarros. Continuava a chover, mas felizmente tinha o meu kispo com carapuço, que me protegeu de uma forte molhadela. No plano da rede dos autocarros, por mais que procurasse, não encontrava nenhum que tivesse como destino o aeródromo, por isso perguntei aos passageiros ali presentes, mas ninguém sabia dar-me nenhuma informação útil. Entretanto, lembrei-me que “paredes meias” com o aeródromo havia uma enorme cadeia e formulei a pergunta de outra forma: Qual a linha de autocarro para a cadeia? Logo uma senhora respondeu que era o S8, que efetivamente me levou até à cadeia… a 2,5 km da entrada do aeródromo. What a f…..!

O avião estava todo encharcado, mas felizmente eu estava prevenido com uma camurça que o Thomas me tinha entregue. Desde que tinha feito o meu planeamento de viagem, havia uma preocupação que não conseguia afastar da minha mente. Eu iria enfrentar ventos de frente entre 85 e 90 km/h! Enquanto secava o avião, um corvo preto pousou no atrelado de um planador a cerca de 5 metros de onde eu estava e ali permaneceu durante 30 ou 40 segundos,grasnando, como se me quisesse transmitir uma mensagem. Como se não bastasse, pouco depois passou um gato preto por trás do avião. Eu não sou supersticioso, mas pareciam indícios de mau agoiro. Pensei para mim mesmo que isto me deve estar a acontecer a toda a hora, sem que eu me aperceba e agora, o subconsciente preocupado com o vento forte, que faz prever um voo difícil, recorre a estas crendices que se ouvem. Estava preparado mental e fisicamente para enfrentar todas as tormentas, motivado pela Boa Esperança, tal como Bartolomeu Dias, quando em 1488 transpôs o Cabo das Tormentas.

Perna de Offenburg para Besançon La Veze (LFQM)

O aeródromo de Offenburg tem a particularidade de ter metade do comprimento da pista dentro da CTR de Lahr, pelo que é necessário contactar, via telefone, a torre de Lahr, 5 minutos antes para coordenar a descolagem de Offenburg. Como ainda não se tinha dado nenhum milagre e o avião continuava sem transponder, a simpática controladora quis que voltasse para sul logo após a descolagem, ou seja, em direção à serra, onde se iria sentir mais turbulência.

Livre finalmente de Lahr, que queria saber a minha posição e altitude a cada 5 minutos, contactei o ATC de Basileia e aí começaram as verdadeiras dificuldades. A região de Basileia e Colmar fica num vale amplo entre a Floresta Negra e as montanhas com 1.500 metros a oeste de Basileia. Inicialmente, eu estava a voar a 5.500 pés com ar relativamente estável, mas teria que descer abaixo de 3.000 pés no setor seguinte, salvo se o ATC me autorizasse a manter a altitude. Devido ao tráfego, recebi um redundante NÃO!

À medida que ia descendo, a turbulência obrigou-me a reduzir potência e velocidade, e consequentemente a minha VT reduziu-se também para uns míseros 40 kph. Tentei novamente obter autorização do ATC para subir, mas a resposta foi a mesma: devido ao tráfego e sem transponder, não estava autorizado a subir, apesar de estar a voar espaço aéreo não controlado, perguntavam-me posição e altitude a cada 5 minutos. O avião avançava lentamente e a turbulência começava a abrandar. Dei louvores a Deus, porque começava a ficar com dores na nuca, provavelmente consequência da tensão a que estava sujeito.

Preparava-me para aumentar a potência, quando, sem qualquer aviso, a asa esquerda subiu ou a asa direita desceu (nunca hei-de saber), ficando em voo semi-invertido. Instintivamente corrigi com as duas mãos com o manche para a esquerda e com o pé do mesmo lado, mas o avião tinha entrado em perda de sustentação, seguido de spin. Percebi de imediato o que se estava a passar e fiz aquilo para que todos os pilotos estão treinados, especialmente os pilotos de planador, e ao fim de meia volta tinha de novo o avião sob controlo com uma perda de apenas 200 pés de altitude.

O vento continuava forte, mas já sem a influência das montanhas com 1.500 metros a oeste, e por isso decidi prosseguir com uma VAI de 110-120 km/h em vez dos 90-100 km/h anteriores. Assim, teria mais tempo para reagir caso entrasse de novo num rotor. O vento à superfície em Besançon estava com 12 nós, (apenas soube a intensidade do vento na descolagem, porque o aeródromo estava fechado entre as 12 e as 14 horas e eu aterrei às 12,28 horas) quase alinhado com a pista. Por outro lado, o Falke é um cordeiro com vento cruzado, ao contrário de outros FDP´s que eu conheço. Tinha percorrido 210 km em 2,33 horas, com uma velocidade média de 82 km/h.

Perna de Besançon para Villafranche (LFHV)

O aeródromo estava deserto e eu precisava de ajuda para abastecer, pois a máquina de abastecimento só “falava” em francês e exigia o preenchimento de um questionário complexo. Finalmente, chegou um estudante que ia ter aulas teóricas, porque com aquele vento nem os pássaros voavam. Ele prontificou-se a ajudar-me e, já abastecido, coube-me mais uma vez decidir se terminava a viagem naquele dia ou se prosseguia.

Consultei a meteorologia para a minha possível rota, considerando a visibilidade, a base das nuvens e, claro… o vento. Sentei-me dentro do avião, completamente indeciso. O sol brilhava por entre as nuvens que pareciam competir entre si para ver qual delas chegava primeiro, exatamente vindas da direção que eu pretendia seguir. Era inevitável que iria encontrar novamente turbulência severa. Coragem não me faltava, mas o corpo clamava por descanso depois de 2 horas e 30 minutos dentro de uma máquina de lavar roupa e a vontade fraquejava.

Consultei novamente a previsão para o dia seguinte, que previa outra frente e que iria condicionar ou impedir a minha saída da parte da manhã, se não todo o dia. Tomei a decisão de prosseguir, convicto de que no dia seguinte seria a pior opção, talvez com menos turbulência, mas com dificuldades acrescidas e bem menos amigáveis.

Em termos de espaço aéreo, apenas tinha que contornar as TRA, que estavam ativas, onde os caças franceses voam a baixa altitude.  A orografia na minha rota teria cerca de 4.500 pés de altura, obrigando-me a subir para 6.500 pés, e era aqui que residia a minha grande dúvida: se a base de nuvens me permitiria subir para esta altitude.

Descolei de Besançon, agora com cerca de 10 pessoas a assistir, perguntando-me o que estariam a pensar. Provavelmente a pensarem que eu deveria ser internado num hospício.   O voo não teria história, não tivesse entrado de novo num rotor, que atirou connosco alguns metros ao ar, para instantaneamente  nos deixar cair como se não houvesse mais ar para nos sustentar. Tudo na cabine, que não estava preso, ficou espalhado pelo chão do avião e pelas minhas pernas. Infelizmente estes fenómenos não são visíveis nem tão pouco avisam, (salvo nos charutos com radar meteorológico, eu já contentaria com um transponder) por isso o piloto nunca sabe quando volta a acontecer. Logo que pude apanhei tudo do chão para não interferir com os comandos do avião. A dada altura lembrei-me de procurar o meu telemóvel, mas não consegui encontrar em lado nenhum e ocorreu-me logo que o teria deixado esquecido em Besançon, quando tinha estado a planear o voo, nas instalações do Aeroclube local. A minha primeira reação foi fazer 180 graus, mas ter que passar mais duas vezes, ida e volta, pela “máquina de lavar”, de certeza não era a melhor opção. Decidi aterrar num aeródromo próximo, alugar um carro e ir recuperar o telemóvel a Besançon. Quando estava à procura no Tablet do aeródromo mais adequado, apercebi-me que tinha internet, que estava a ser fornecida pelo telemóvel, logo ele tinha que estar dentro do avião. Aliviado, prossegui a viagem,  desviando-me pela esquerda e pela direita da minha rota, para manter condições visuais, conseguindo percorrer os 217 km em 2 horas e 23 minutos, com uma média de 91 km/h.

Perna de Villafranche para Saint-Étienne Loire (LFMH)

Logo que estacionei em frente às bombas de abastecimento, a minha principal preocupação era encontrar o telemóvel. Procurei em todos os cantos, tirei toda a bagagem, as almofadas dos bancos, mas o telemóvel não estava visível. Já com o avião abastecido, continuava sem ver vivalma, mas precisava encontrar alguém que tivesse a amabilidade de ligar para o meu número, para através do som descobrir onde se tinha enfiado. Lá encontrei um francês simpático e, como suspeitava, o telemóvel estava debaixo do banco do passageiro. Tive que desmontar meio avião para o retirar.

Agora, era necessário ancorar o avião e procurar um hotel para um merecido descanso, mas as opções não eram muito animadoras. Segundo o mesmo francês que me ajudou, nas proximidades só havia um hotel de cinco estrelas, que ia dar um rombo no meu orçamento, e a alternativa mais económica ficava na cidade, a 25 km. No entanto, em Saint-Etienne, a 50 km de distância em linha de voo, havia vários hotéis junto ao aeródromo, alcançáveis a pé. Não hesitei. O AITA deixou-me ancorar o avião na relva à minha descrição. Percorri 54 km em 33 minutos, com uma velocidade média de 101 km/h. Dez minutos a pé até ao hotel, com um restaurante espanhol mesmo em frente, e finalmente pude dar o merecido descanso ao corpo.

Perna de Saint-Etienne Loire para Les Cévennes (LFMS)

A meteorologia não era propriamente desfavorável, mas poderia reservar muitas surpresas, com muitos estratos baixos e cúmulos mais altos, típico pós-passagem de uma frente. Com a orografia a obrigar-me a subir para 7.500 pés, poderia não conseguir continuar e ter que voltar para trás, ou procurar um aeródromo nas proximidades. Imerso nestas conjeturas, decidi sair apenas com uma direção, mas sem um aeródromo de destino definido. O espaço aéreo era amigável e não me obrigava a desvios, conseguindo voar entre duas camadas de nuvens, sempre com saída para um dos lados.

Passada cerca de uma hora, o tempo começou a melhorar notavelmente e comecei a pensar em aterrar num qualquer aeródromo a uma hora de voo à minha frente, para depois fazer a última perna até Benabarre, mas todos estavam condicionados, ou porque eram restritos a aeronaves residentes, ou não tinham gasolina.

Decidi optar por Les Cévennes, que já ficava ligeiramente atrás da minha rota e à esquerda. Percorri 228 km em 1,52 horas, com uma velocidade média de 124 km/h.

Os aeródromos na França e na Alemanha são como cogumelos, mas só têm atividade ao fim-de-semana. Les Cévennes é mais um aeródromo fantasma durante a semana e, para minha surpresa, a bomba de abastecimento não aceitava cartões de crédito, exceto o cartão da TOTAL.

Através dos números de telefone que por ali havia colados nas portas dos hangares, tentei contactar alguém que me pudesse ajudar, mas alguns só falavam francês e tive que pedir ao piloto de um TBM 650 (única pessoa para além de mim no aeródromo),  à espera de um passageiro, para falar com eles em francês.

Não havia hipótese de abastecer em Les Cévennes, por isso comecei a ligar para todos os aeródromos nas proximidades e, depois de vários fiascos, encontrei alguém no Aeroclube de Millau Larzac disposto a ajudar-me. Depois de alguma espera, confirmaram-me que alguém iria abastecer-me no aeródromo de Millau às 15 horas, e poderia pagar em dinheiro.

Perna de Les Cévennes para Millau (LFCM)

Distância: 86 km, percorridos em 44 minutos a uma velocidade média de 116 km/h, sem incidentes. Mais um aeródromo deserto, sem vivalma, comigo estacionado à frente da bomba de abastecimento, na esperança de que aparecesse alguém para me abastecer mais cedo.

E apareceu, um Cessna 182 de última geração em instrução, obrigando-me a empurrar o TEX para que pudessem abastecer. Ainda tentei que me abastecesse com o cartão dele, e eu pagaria em dinheiro, mas não aceitaram. Eram uma empresa e isso exigia uma ENORME engenharia contabilística. F… you!

Tive que esperar 2 horas até que chegasse a prometida ajuda.

Perna Millau Larzac para Benabarre (LENA)

Enquanto esperava pelo abastecimento, tive a oportunidade de equacionar todos os cenários e rotas. Afinal, esta era a grande prova, tanto para o piloto quanto para o avião. A minha rota preferencial (Plano A) era voar para Perpignan, seguir pela linha de costa e antes de chegar a Empuriabrava, rumar para o interior. No entanto, desisti logo dessa ideia, pois aquela zona estava com condições IFR. Assim, o Plano B levava-me através dos Pirenéus, cuja orografia se eleva a 10.000 pés, levantando duas questões pertinentes:

Primeira: o avião conseguiria subir a 11.000 pés?
Segunda: as nuvens estariam suficientemente altas para me permitir subir a esta altitude?

De acordo com a previsão meteorológica, a base das nuvens rondava os 9.000 e os 11.500 pés, com visibilidade superior a 10 km. Apesar de esta ser a perna com maior duração de voo, era também a mais desafiante e quiçá a mais perigosa. Em contrapartida, eu tinha adquirido grande confiança no avião e, entretanto, conhecia todos os seus parâmetros de memória e sabia exatamente os seus consumos de combustível. Com base nisso, calculei o ponto de não retorno no caso de não conseguir passar os Pirenéus, que me permitiria voltar para trás e aterrar com 30 a 40 minutos de reserva de combustível.

A viagem até aos Pirenéus foi “Piece of Cake”, apesar de continuar com vento de frente, mas sem turbulência. O FIS de Marseille pediu-me apenas para o contactar quando estivesse a abandonar a sua FIR e a entrar na FIR de Bordeaux e, lá chegado, transferiu-me para o FIS de Toulouse, que passou a pedir-me a posição e altitude a cada 5 minutos, não me deixando subir acima de 6.500 pés. Eu teria gostado de ir subindo com uma pequena razão de subida, de forma a atingir os Pirenéus já nos 11.000 pés ou mais, mas sem transponder não estava autorizado.

Mal saí do espaço aéreo controlado, a 6.500 pés, a cerca de 30 km da fronteira com Espanha, onde os Pirenéus começam a elevar-se majestosamente, iniciei a subida com 2.600 RPM e o avião respondeu com uma razão de subida de 3 m/s e, às vezes, com 5 m/s, quando encontrava alguma orográfica. Rapidamente atingi os 11.000 pés e cheguei também ao vale que tinha escolhido para a travessia.

As nuvens que estavam à minha volta ou estavam mais altas ou não estavam na minha rota. Cheguei finalmente ao ponto de não retorno, mas a visibilidade era excelente e consegui ver, através do vale, a orografia do terreno mais baixa do outro lado dos Pirenéus. Agora, só nos separavam 30 minutos  de voo do destino final. Depois de 328 km percorridos em 2,54 horas, com uma velocidade média de 113 km/h, aterrei em Benabarre, onde o António estava à minha espera, a que se juntou o Christian 2 horas mais tarde.

Nessa noite, fui dormir a Lérida, novamente num B & B Hotel, próximo da estação do TGV, que tinha que apanhar no dia seguinte para Madrid, para depois apanhar um voo para o Porto, onde tinha o carro.

Mas as minhas aventuras não acabaram aqui.

Estava eufórico e, como adoro sushi, decidi que me ia presentear com um opíparo jantar. Perguntei à recepcionista, que era uma aficionada de sushi, onde se podia comer bom sushi e ela indicou-me os dois melhores restaurantes de Lérida. Introduzi o nome do primeiro no Google Maps e arranquei a pé para lá, aproveitando o caminho para pôr alguns telefonemas em dia, sem prestar atenção ao caminho. Enquanto esperava ser servido no restaurante, apercebi-me de que tinha pouca bateria no telemóvel e decidi poupá-la, pois precisava do Google Maps para regressar ao B & B Hotel, já que não fazia a mínima ideia de qual era o caminho de regresso. Quando saí do restaurante, constatei que só tinha 5% de bateria e, para a poupar, decidi orientar-me pela voz da guia em vez de me orientar pelo mapa, que gasta muito mais energia. Passados uns largos minutos, comecei a ter a sensação de que tinha andado menos do hotel ao restaurante do que aquilo que já tinha percorrido, mas pensei que o Google Maps me tinha indicado outro caminho e, finalmente, cheguei ao B & B Hotel, mas… garantidamente não era o hotel onde eu tinha feito o check-in e onde tinha a minha bagagem. A recepcionista explicou-me que havia o B & B Hotel Cidade de Lérida e o B & B Hotel Lérida. Proferi um chorrilho de pragas para libertar a raiva e, em resposta à minha pergunta seguinte, a informação de que o meu hotel estava a 3 km ainda me deixou mais furibundo comigo mesmo. Pensei em pedir um táxi, mas lembrei-me dos meus netos, que para irem do sofá da sala ao quarto pedem o táxi do pai ou da mãe.

Afinal, eu vivo segundo o lema “Live Young” e “Stay Active”. O que significava mais 3 km para quem tinha acabado de fazer uma viagem épica? Por cortesia da menina da recepção, pude carregar o telemóvel durante 15 minutos, utilizando o seu carregador e saí com energia para fazer 300 km. Quando cheguei ao hotel, já ia a coxear com enormes bolhas, sobretudo no pé esquerdo. No dia seguinte, para fazer os 800 metros até à estação do TGV, tive de enrolar o pé na fita que o Thomas me tinha oferecido para as eventualidades que pudessem acontecer durante a viagem.

No final, quero agradecer a todos aqueles, que de uma forma ou doutra, me proporcionaram fazer esta viagem, em especial ao Thomas por ter cuidado e mantido tão bem o TEX.

E, como sempre, fico surpreendido com a facilidade e com a segurança com que se voa na Europa, sem necessidade de coletes amarelos (não encontrei um único em toda a viagem) sem cercas e muito menos com exigências absurdas, como apresentação do registo criminal (como acontece em Viseu).

Descodificação das siglas técnicas.

  • VAI = Velocidade Ar Indicada
  • VT = Velocidade Terreno
  • EDKW = Todas as siglas de quatro letras identificam o aeródromo através do código atribuído pela ICAO (Organização de Aviação Civil Internacional).
  • FIS = Serviço de Informação de Voo
  • ATC = Controlo de Tráfego Aéreo
  • AITA = Agente de Informação de Tráfego de Aeródromo
  • PPR  = Prévia Permissão Requerida
  • UTC = Hora Universal
  • CTR = Região de Controlo de Tráfego
  • TRA = Área Restrita Temporária
  • TBM 650 = É um avião moderno Turbo Hélice para 8 ou 10 passageiros (consoante a configuração) que custa mais de 2 milhões de euros. 

Arlindo Silva. Outubro de 2024. Fotografias e imagens do autor e poderão conter direitos de imagem associados.

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