Tal como um alçapão de uma casa numa árvore que convida os putos para uma tarde de brincadeira, um buraco entre as nuvens convidava-me a fugir de um tecto que parecia um monte de roupa suja e a entrar para um Mundo onde o Sol brilha para sempre.
Com o frio a tentar entrar a todo o custo pelas frinchas do meu fato térmico de cinco camadas, e com o vento a empurrar-me irritantemente o microfone contra o nariz, aproximo-me das nuvens, que por breves instantes me banham com a sua neblina fresca. Estendo a mão. O privilégio de voar num avião aberto, mata-nos o sonho de criança de que são feitas de algodão. É apenas vapor, mas guardarei para sempre este segredo só para mim. Passados alguns minutos, estou sobre um tapete branco remendado com pedaços de terra, e o Sol brilha num azul que me aleija a vista. Como se eu tivesse passado por um portal para outro mundo. Mas não me posso descontrair nem apreciar a paisagem. Procuro a todo o custo um ponto negro a Sudoeste. Sei que não estou sozinho, e que a qualquer momento surgirá um bocado de alumínio de duas toneladas nas redondezas. Sei disso graças às comunicações rádio entre a torre e o aparelho em questão. Um milagre da tecnologia que existe há mais de um século, quando em 1915 uma emissão rádio a partir do solo em Brooklands foi ouvida num avião pela primeira vez. Mantenho-me então afastado deste aparelho inbound, e redobro a minha atenção a ouvir o controlador de tráfego aéreo.
A sua voz soa cansada, mas o seu discurso é firme. Pelo seu tom de voz, imagino que já não seja jovem, quem sabe grisalho, ou com um pouco de cabelo em falta. Com uma camisa branca e com uma gravata com um pin subordinado ao tema da Aviação. Não muito longe dele, de certeza que estará uma caneca com café a arrefecer, mas não muito próximo dos aparelhos ou do teclado. Será que está numa sala apenas iluminada pela claridade dos ecrans, ou estará num imenso aquário de vidros grandes com vista sobre todo o aeródromo? Será que ainda usa um microfone de mão, daqueles com fio enrolado, ou um fixo na mesa como numa central de táxis? Ou um moderno auricular com um microfone? Não sei. Dele só conheço a voz, e ele de mim só conhece um mero triângulo no ecran.
´Echo-Kilo´.
Tem a minha direcção, velocidade e destino ao alcance de um botão. Talvez me reconheça do bar ou do parque de estacionamento. Talvez nos tenhamos cruzado. Ou talvez não. Ao fim ao cabo, ele tem uma quantidade de aeronaves para contactar. O seu tom por vezes é grave, mas sempre cortês, e presta sempre muita atenção aquilo que lhe dizemos. Na maior parte das vezes não percebo o que os outros aviões dizem. Algumas vezes, um ruído estático é tudo o que se ouve. De outras, alguém com a boca cheia de batatas a comunicar o indecifrável. Conto crucialmente com a repetição do contexto vinda da torre, para perceber o que se está a passar.
´Jgbghleghsd thfgrfptz cgthshsfgsheksj Lima Oscar.´
´Lima Oscar, 3000 pés, boa viagem´.
Ele sabe que dezenas de aeronaves o estão a ouvir nesta frequência, e sabe que dezenas de julgamentos e opiniões estão a ser feitas sobre ele neste momento. Perco-me a imaginar se ele tem filhos e uma família em casa à espera dele. Quase que consigo imaginá-lo a fazer torradas para o filho e a levá-lo para a escola. Não é que ele esteja a ser paternal connosco ao rádio. Estamos todos metidos “nisto” da Aviação, e a sua voz transpira a segurança da terra firme. O cansaço que demonstra não é de admirar, desempenhando uma tarefa que exige concentração absoluta durante longos períodos, numa indústria vertiginosa mas frágil e permanentemente açoitada por sucessivas crises económicas.
´Golf-Echo-Kilo vire à esquerda em direcção a Este, eu aviso quando puder voltar à perna de vento de cauda. ´
´Virar à esquerda, fico à espera do seu contacto, Golf-Echo -Kilo. ´
Lembro-me de há uns anos quando eu voava sem qualquer rádio num campo de aviação sem comunicações, e fazia uma aproximação overhead standard, completamente relaxado por estar a proceder conforme o livro me tinha ensinado, e a fazer o circuito no sentido dos ponteiros do relógio conforme as regras desse aeródromo ditavam, de ter aparecido vindo do nada outro aparelho visitante mesmo à minha frente, a efectuar erradamente o circuito no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Não chocámos no ar por pouco. Portanto, acreditem que sei dar valor.
Hoje quando aterrei, o controlador estava cá fora na varanda da torre ferrugenta, feita com contentores. Era um jovem de calções. Ao menos tinha acertado na caneca do café. O rádio tem destas coisas. Quando era puto nos anos 70 e ouvia o Rod Stewart, também pensava tratar-se de uma sexy senhora de voz rouca. E a imagem mental que tinha do Roberto Carlos é que ele era como o Pelé. Aqui fica a minha homenagem, apreço e respeito aos meus amigos controladores aéreos. Vocês não sabem, mas são sempre o nosso principal companheiro de viagem.
Mike Silva. Outubro de 2020. Fotografias meramente ilustrativas.
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