O Borrego é a mais perigosa manobra da Aviação, que tem traumatizado milhares de passageiros. Esta manobra súbita, normalmente efectuada por um piloto pouco experiente só aparece nas notícias graças à denúncia de alguma celebridade e demonstra a facilidade com que pode acontecer um acidente de Aviação.
Por esta altura, os meus amigos ligados à Aviação deixaram já tudo o que estavam a fazer e arqueiam as mãos em cima do teclado, incandescentes de raiva, prontos a corrigirem-me. “Como é que este gajo pode ter escrito uma coisa destas?“- Perguntam. Neste momento se pudessem até me davam porrada. Mas antes que perca alguns leitores ou me risquem o carro, deixem-me sossegá-los e dizer que este foi apenas um parágrafo concebido para chamar a vossa atenção. E sobretudo, para constatar que este é infelizmente o pensamento generalizado do público, sobretudo aquele que nunca viveu a experiência de um borrego e apenas constrói a sua opinião baseado nas notícias bombásticas e sensacionalistas sempre que se fala sobre Aviação.
Para quem vai pouco ao talho ou ao hipermercado, “borrego” é uma boa carne para fazer um bom ensopado ou uma boa jardineira de borrego guisada com batata, cebola e tomate.
Na escola costumávamos chamar borrego àquele nosso colega com o cabelo esquisito que não era propriamente inteligente ou streetwise.
Na Aviação, não me perguntem porquê, porque eu não sei, convencionou-se chamar borrego à manobra em que o piloto está quase a aterrar, mas à última da hora desiste e resolve ganhar de novo altitude, para ir dar a volta e tentar aterrar de novo. Uma definição que faz todo o sentido quando traduzido do termo aeronáutico inglês go-around. Os brasileiros descrevem a mesma manobra como arremeter. Nós, ficámos não sei porquê com o “borrego“.
Do ponto de vista do passageiro, é compreensível a ansiedade que esta manobra proporciona: Alí estamos nós satisfeitos por estarmos a chegar e por o voo ter corrido bem, e eis que de repente, o avião estremece, ficamos colados à cadeira, os motores começam a fazer mais barulho e o solo que tão generosamente se aproximava, começa a ficar mais e mais longe.
Toda a gente a olhar uns para os outros, a perguntar e a comentar, e o comandante com a sua voz de piloto, com uma calma sinistra e desconfiável a avisar em Inglês que “foi não sei o quê”, mas que está tudo bem.
É neste cenário que nasce espontaneamente um sentimento e um nervosismo de quasi-acidente, que uma vez germinado, pouco explicado e deixado à solta, em qualquer media sedento de notícias bombásticas, transforma uma manobra corriqueira e normal da aviação, num acidente evitado pela graça do Espírito Santo. “Foi Deus que esteve ali”, é um comentário dito por passageiros em lágrimas, nos átrios dos aeroportos em directo para a equipa de reportagem enviada ao local, em dias que não dá “Bola” na televisão.
Como passageiro, já borreguei algumas vezes. Principalmente no ventoso aeroporto de Birmingham, em que o avião por vezes vai tão de lado, que deveria ter montado de origem rodas de cadeira de escritório. Como piloto, lembro-me da primeira vez que borreguei, quando numa aproximação à pista, o meu instrutor Mick me perguntou se eu estava a controlar a velocidade de aproximação e eu respondi que sim. Segundos depois, tinha os hangares do lado esquerdo da pista à minha frente, em vez da pista. Acelerei a fundo e iniciei de novo a subida, enquanto levava nas orelhas do Mick. O borrego é simplesmente isto. Abandonar uma aterragem com grandes hipóteses de correr mal , e começar tudo de novo. É como amachucar um desenho que estava mal feito e pegar num papel para desenhar outro.
Embora possa acontecer devido a uma emergência, não é em si uma emergência. O que motiva um piloto a fazer um borrego, podem também ser condições estranhas ao voo, como por exemplo a pista estar impedida por outro avião ou por um veículo.
Os modernos aviões comerciais têm até um botão designado de TO/GA (Take-Off/Go Around) que configura rápida e automaticamente a aeronave de modo a optimizar o comportamento dinâmico em caso de borrego, retirando grande parte do workload do piloto durante a manobra. Em modelos que não contam com esta tecnologia, e nomeadamente na restante aviação geral é normalmente usada a mnemónica “5UP” (power up, nose up, gear up, flaps up, speak up)
Por vezes o próprio piloto nem tem voto na matéria, com o borrego a ser ordenado pela torre de controlo, devido a um conflito de gestão de tráfego aéreo.
Mas quando a opção de abandonar a aterragem é do piloto, muitos optam por não fazer o borrego, por pressão profissional ou corporativa. Por vergonha que outros colegas cá em baixo vejam a aterragem e lhe apontem o dedo. Pelo estigma criado pela imprensa e pelo receio de criar uma situação incómoda e stressante para os passageiros. E sobretudo, pondo o dedo na ferida, por causa dos custos associados com mais consumo de combustível e pela pressão em manter horários de chegada. E finalmente pela pressão da gestão dos apertados e dispendiosos slots disponíveis nos movimentados e sobre-lotados aeroportos internacionais.
Por isto tudo, é um privilégio extremo quando estamos a bordo de um avião e de repente a nossa aterragem é abortada. Significa que estamos nas mãos de um piloto extremamente bem preparado e confiante, que põe a segurança dos passageiros acima de qualquer outro imperativo seja ele comercial, corporativo ou logístico. Para mim é o traço que distingue um verdadeiro Aviador, de alguém que não nasceu para isto e mais valia estar a trabalhar numa Padaria. Significa que vamos de certeza chegar sãos e salvos . Para mim e para outros apaixonados da Aviação, significa sobretudo mais uns minutos no Ar a testemunhar na primeira pessoa aquela que é a mais nobre manobra da Aviação. Não tem nada a ver com desgraças, tragédias ou acidentes. É precisamente quando um piloto opta por forçar uma aterragem de qualquer maneira e à pressa, não indo à volta, que corremos perigo e os acidentes acontecem.
Em vez de fixarem o primeiro parágrafo deste texto, gostava que fixassem este último.
Mike Silva. Novembro de 2017. Fotografias meramente ilustrativas
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