Haverá alguém mais estúpido à face da Terra do que aquele que se ri dos sonhos dos outros?
Lembro-me de há muitas décadas atrás passar pela Segunda Circular em Lisboa, e ver lá ao longe as caudas dos aviões estacionados no Aeroporto da Portela. Levantava-me no banco traseiro do táxi (devia ser um táxi, ou um carro de um familiar, não me lembro, pois naquela altura não havia cá dinheiro para comprar um carro) e a minha cabeça esticada seguia aquela visão sublime à distância até desaparecer. Queria tanto um dia ir ver os aviões! Mas era impossível. Morava na outra margem, e uma ida ao aeroporto só mesmo de passagem a caminho da casa de um familiar. Passados uns meses, conseguiu arranjar uma caixa de papelão de um esquentador onde conseguia caber lá dentro e desenhei-lhes uns “manómetros”. Durante semanas a fio, tive assim o meu primeiro avião onde levantei voo pela primeira vez. Onde registei as minhas primeiras horas na caderneta. Viajei para sítios onde só o sonho me pôde transportar. Chorei baba e ranho quando um dia cheguei a casa e a minha Mãe tinha deitado a caixa fora. Lembro-me de ter até acordado uma vez de noite em sobressalto e em extrema angústia.
Mas o sonho continuou pela vida fora. Anos depois, quando a minha habilidade me começou a permitir surripiar as ferramentas do meu pai, construí uma fuselagem pesadíssima em madeira prensada com restos de móveis, cujo assento era uma cadeira da sala partida. Instalei-lhe também um motor de um moto-serra Sachs Dolmar, que estava avariada e partida, e uma hélice feita por mim. “Livra-te de meteres isso aqui em casa a trabalhar… “ ameaçava-me a minha Mãe com um tenebroso ultimato. Assim tirei tudo da varanda e levei lá para baixo no elevador. A malta parou tudo para vir ver um bocado de madeira a rodar com um motor de moto-serra. Para os que não tiveram o privilégio extremo de viver nos anos 80, ter a oportunidade de manusear um motor a dois tempos era algo que nos colocava num patamar equivalente a uma estrela rock ou a um príncipe. Arrisco mesmo a dizer, que para os putos da minha geração, era preferível ter uma motorizada a dois tempos do que ser um Príncipe. Portanto todos os putos da rua se aproximaram com curiosidade para ver-me a pôr o motor a trabalhar e fazer a hélice de madeira (que era apenas um pau sem qualquer detalhe) saltar perigosamente segundos depois do veio onde tinha sido aparafusada. “Vou chamar a polícia”, vociferou a porteira do prédio ao lado, danada por a hélice ter batido violentamente na parede e ter derrubado o prato de comida para os gatos que ela tinha lá posto há minutos atrás. Foi o fim do Aeromike M-12. Doze era a minha idade.
Passados 40 anos, vejo agora fotos de jovens em países pobres a posarem orgulhosamente ao lado de aviões que eles construíram com chapas de zinco e janelas de casa de banho. E com asas feitas com placards publicitários. Depois leio os comentários nestas fotos. Jocosos e com emojis a rirem-se. Por momentos sinto um arrepio na espinha, e imagino estas pessoas a rirem-se da minha caixa de papelão. A comentarem que nunca iria voar. Que era uma estupidez. Que não tinha ailerons ou que o ângulo de ataque estava errado. Tudo gente inteligentíssima, e quem sabe entre elas de certeza algum desenhador ou técnico da NASA. No mínimo são todos pilotos.
Não sei se esta malta será realmente privilegiada a esse ponto, ou se serão apenas frustrados e pobres de espírito por não poderem ter a liberdade ou a coragem de materializarem o seu sonho desta maneira. Marionetas de uma sociedade de consumo que lhes mata o sonho e os explora, vingam-se assim, debitando sabedoria, espezinhando alguém que num país pobre sem recursos pegou no que tinha à sua volta para se tentar elevar acima da pobreza e da falta de perspectivas.
Na maior parte destes casos, estes são jovens que nunca viram um avião a sério ao perto. De Aviação, apenas conhecem os aviões que passam por cima das suas casas lá bem alto, imunes e a salvo de uma existência e de um futuro diariamente incerto. Mais do que uma oportunidade para darem azo à fabulosa criatividade e espirito de desenrasque e improviso que os caracteriza, estas construções são o que os separa do descalabro emocional e social. O que os impede entrar em desespero. Estes montes de tábuas e chapas de zinco são a única coisa que lhes diz que o sonho talvez possa uma coisa palpável. Como o prisioneiro que desenha a lápis uma paisagem na parede da cela. Como a fruta falsa em cera na mesa de uma casa de um bairro de lata limítrofe. Como bonecos desenhados na parede de um hospital para crianças. Como um poster da Jessica Alba atrás da porta. Embora muitos dos “especialistas” que comentam jocosamente estas fotos garantam que “este monte de tábuas nunca iria conseguir voar, a verdade é que estes aparelhos lhes permitem tocar nas nuvens. Como cantou uma vez Manuel Freire, “Eles não sabem que o Sonho é uma constante da Vida, tão concreta e definida, como outra coisa qualquer. E sempre que o Homem sonha, o Mundo pula e avança.”
Haverá alguém mais estúpido à face da Terra do que aquele que se ri dos sonhos dos outros?
Sou privilegiadíssimo por ter nascido numa realidade estável e num continente desenvolvido com acesso a tudo. Caso contrário, podem ter a certeza que ainda estaria também a fazer aviões com madeira e pregos, indiferente aos estúpidos privilegiados a rirem-se de mim.
O passageiro que mais honra me daria transportar no meu avião, seria um engenheiro aeronáutico destes, que mais do que aviões, constrói sonhos. Como de momento isso ainda não se proporcionou, escrevo esta crónica, horas depois de ter enviado um monte de revistas de aviação ultraleve pelo correio para uma vila no interior da Nigéria, para um destes amigos que me segue nas redes sociais e que construiu um ultraleve pendular com uma hélice artesanal e um motor de uma motorizada 125. Ele perguntou-me o que é que eu achava, se aquilo algum dia iria voar. Eu respondi-lhe que sim, que já está a voar.
Mike Silva. Maio de 2022. Fotografia gentilmente cedida pelo autor.
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