Esquadrão Santa Cruz, missão Lusitânia

A primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul efectuada por Carlos Viegas Gago Coutinho e Artur De Sacadura Freire Cabral representou marcos de avanço em várias componentes, tecnológica, procedimental, histórica e social. Desde já pelo rápido avanço da aviação na qual as aeronaves inicialmente careciam de performance e autonomia, também pelos métodos de navegação marítimos que, apesar de já há bastantes décadas ter sido adicionado o relógio ao grupo de instrumentos, nunca tinham sido aplicados à navegação aérea sobre o oceano.

Gago Coutinho cedo sonhou inovar neste campo e, apesar de ser um operacional, tinha já no seu carácter uma experiente faceta política e diplomática, o que o levou a utilizar a oportunidade do centenário da independência do Brasil para o feito. Quanto à quarta componente referida, a componente social, revelou-se durante a travessia e manteve a vela acesa mesmo após dois acidentes no percurso, levando o entusiasmo de dois povos irmãos a que o Estado Português – falido, descredibilizado e instável – apoiasse a boa conclusão da travessia ao fornecer uma terceira aeronave.

Há já vários anos eu me perguntava qual seria o modo grandioso e respeitoso de celebrar o centenário da epopeia daqueles dois que em 1922 foram aclamados heróis nacionais. Tendo assistido ao aparecimento do projecto que contemplava a construção de uma réplica do Fairey IIID utilizado à partida de Lisboa, fui ficando descansado pois com certeza seriam pessoas mais qualificadas e experientes do que eu a fazer acontecer tal projecto. No Verão de 2021 indaguei qual seria o estado do projecto e dei conta de que o mesmo ainda não tinha saído do papel.

De imediato apresentei à Marinha Portuguesa e à Força Aérea Portuguesa um projecto, ainda nem muito bem pensado, de fazer uma réplica do Fairey IIID navegável na água, de forma a dignificar a homenagem do grande feito destes dois grandes portugueses.

A resposta foi positiva em Setembro, carecia desta resposta pois jamais eu iria gastar 5 meses da minha vida e uma considerável quantia financeira a fazer uma réplica que não seria utilizada.

Após 7 semanas de preparação de materiais, planos estruturais e recursos, iniciei a construção no dia 10 de Novembro de 2021. No início o ritmo ainda era baixo, 4 a 5 horas diárias de trabalho, ainda sem experiência de soldadura e com a dificuldade de não ter cavaletes apropriados nem ajuda para mover a estrutura; inicialmente pesava cerca de 50 kg mas rapidamente passou para os 200 e 300kg com a adição diária de metal.

As horas de trabalho tinham de ser enquadradas entre os meus períodos de serviço de voo e o descanso tinha sempre prioridade, levando a que grande parte dos dias eu trabalhasse após o jantar, até altas horas da madrugada.

Maioritariamente concluída a fuselagem em meados de Janeiro passei para as asas, acoplando duas longarinas para cada asa e unindo cada conjunto de asas com 5 montantes verticais fixos (na aeronave original eram amovíveis por parafusos, na réplica optei por soldar). Tendo inicialmente previsto que a réplica fosse igual ao Lusitânia, a aeronave utilizada à saída de Lisboa, chegado à fase da construção das asas dei conta da enorme dificuldade logística aplicada a uma envergadura de 21 metros, tendo optado pela conversão do projecto para réplica do Santa Cruz, a última aeronave utilizada na travessia, porque a envergadura deste é de 14 metros (que retirando a largura da fuselagem e a zona curva da ponta da asa, requereria apenas uma longarina de 6 metros, exactamente o comprimento máximo disponível no mercado regular).

A aeronave original era maioritariamente composta por uma estrutura de madeira reforçada por dois esticadores em cada vão, contudo devido à minha inexperiência em cortar e acoplar madeira – aliado à indisponibilidade de esticadores resistentes e ao preço dos que estavam disponíveis – optei por uma construção integralmente metálica. Tendo previsto um período de 18 dias livres em Fevereiro devido a férias e folgas eu estava crente no término do processo no final desse mês, deixando Março livre para todos os pormenores estéticos, contudo tarefas exteriores urgentes fizeram com que apenas fosse possível na segunda semana de Março dar início à aplicação de tela.

Foram utilizados cerca de 360 metros de tubo metálico de vários diâmetros, 150 metros quadrados de algodão bruto, 4 metros cúbicos de XPS, 28 Kg de resina poliéster, 30 litros de tinta plástica como induto e 35 litros de tinta para coloração.

Graças a três noites seguidas sem dormir a réplica ficou pronta 5 horas antes do prazo combinado para o transporte, que foi efectuado pela Força Aérea Portuguesa na manhã de 22 de Março. À chegada ao hangar da Esquadrilha de Helicópteros da Marinha, na Base Aérea nº6, a surpresa foi geral e atraíu a atenção de maior parte dos militares presentes, pelo que aproveitei todos os braços à mão para descansar da força que havia feito sozinho nos últimos meses.

Nos dois dias que se seguiram procedeu-se à montagem dos flutuadores e asas (os flutuadores nunca tinham sido montados por limitação de altura do local de construção) e no dia 25 de Março procedeu-se ao teste de flutuabilidade nas antigas rampas de hidroaviões.

Estando muito longe da qualidade de construção requerida para certificação aeronáutica, ficou provada a segurança de navegação em água, pelo que se decidiu a definitiva participação da réplica no desfile aeronaval da cerimónia do centenário, no dia 3 de Abril, junto à Torre de Belém. Após alguns pormenores estéticos necessários, o ferry para a zona da cerimónia foi efectuado no dia 1 de Abril, pelo que as fotos tiradas e publicadas por quem assistiu no rio Tejo facilmente eram confundidas com alguma brincadeira relativa ao dia das mentiras e assim se conseguiu manter o efeito surpresa para o dia do desfile. Tendo ficado fundeada em flutuação na doca de Pedrouços durante 36 horas, este foi o derradeiro teste de flutuação antes da apresentação em Belém no dia 3, teste facilmente superado pela estrutura de uma máquina que, embora não se chame aeronave, muito desejaria que isso lhe chamassem.

No dia do desfile a meteorologia contemplava 15 knots de vento, o máximo previamente estipulado entre eu e a coordenação do desfile, tendo sido acordado que o plano prosseguiria. O reboque com embarcação decorreu lentamente devido às forças da maré vazante e o vento de Leste, que aliados entre si, ditaram uma velocidade de 2 knots.

O meu companheiro de viagem foi o meu tio, Álvaro Anunciação, pois a camaradagem em mil outras aventuras já nos deu confiança suficiente para operar juntos em qualquer ambiente. Estabelecidos no local destinado a fundear, junto ao Cais da Princesa, constatou-se que o ferro colocado no fundo do rio exercia tracção inferior à requerida para vencer maré e vento, tendo sido posto em prática o plano alternativo de tracção contínua por parte da embarcação da Marinha.

No final da cerimónia, após o desfile das embarcações da Marinha Portuguesa e Espanhola e após as passagens das várias esquadras aéreas militares, a réplica do Santa Cruz deu o mote, juntamente com a caravela Vera Cruz, ao desfile de embarcações civis. A ideia foi recrear a partida da aeronave, de Belém rumo ao mar.

Não me é possível transcrever em palavras a alegria e euforia que nos assolaram nesse momento, reviver a partida de Gago Coutinho e Sacadura Cabral cem anos depois. Aí questionei-me: “Quem sou eu para estar aqui no lugar dos dois destemidos que efectuaram a epopeia da primeira travessia? Não me sinto digno de estar no lugar deles, aliás não tendo ninguém ainda vivo efectuado tal façanha, talvez ninguém seja mesmo digno de recrear historicamente este momento.” Mas já lá estávamos e não havia volta a dar senão prosseguir com o plano.

Desde o início tivemos o cuidado de fazer uma recreação histórica e não um teatro, por isso foi muito bom que as lentes em terra não captassem as caras dos tripulantes. Deste modo espero que no imaginário de quem assistiu se fixem as caras que conhecemos das litografias com um século e não as nossas, que apenas ocupávamos o cockpit por uma questão de controlo da réplica ao vento e à maré.

Sem interregno prosseguimos após o desfile com o ferry de regresso para a base aérea do Montijo, chegando à rampa cerca de 3 horas depois. Aí sim, o vento mostrou-nos o tipo de dificuldades enfrentadas na real travessia. Ondulação de quase um metro, 25 knots de vento e uma maré forte ditaram algumas dificuldades, ultrapassadas pela vasta experiência das tripulações das duas embarcações da Marinha que nos rebocavam e da embarcação da Autoridade Marítima que nos escoltava.

Chegados a terra, em segurança, era altura de brindar com todos os envolvidos na execução deste projecto que estavam presentes. Missão cumprida!

Os meus agradecimentos aos 6 elementos da Força Aérea e aos 12 da Marinha que tornaram possível a integração desta réplica nas celebrações do centenário da primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul e às várias pessoas que foram acompanhando o projecto desde a construção até à sua largada na água. E lanço o desafio à comunidade aeronáutica portuguesa: Façam! Sem recursos financeiros, sem tempo disponível, com dificuldades burocráticas ou outras, mas façam. Se esperarmos que outros façam, provavelmente não vai acontecer. Como me disse um amigo há uns dias, só temos de levar uma pedra, o resto dos ingredientes vão aparecendo como que por providência divina e no fim teremos uma saborosa sopa feita por todos e que não custou fortunas a ninguém.

Pela gloriosa memória da aviação nacional, tudo!

Valter Santos. Abril 2022. Texto Valter Santos. Fotografia Guilhermino Pinto e Óscar Rodrigues,

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