A história de um fim de semana “Vintage”

Esta aventura começou duas semanas antes, pelo telefone com o João Rosa.

Ambos gostamos de máquinas antigas e de um bom passeio, pelo que aproveitamos a ocasião do XV Encontro de planeadores Antiguos organizado pelo Club Loreto baseado no Aeródromo de Santo Tomé del Puerto em Segovia e começamo-nos a organizar para a viagem a bordo do Scheibe SF25 Falke D-KBIU.

Ponto de encontro marcado e lá nos encontramos sexta-feira (depois de uma boa fila de transito desde Sintra) em Lisboa pelas 19:00 UTC+1 com bagagem “light” pois o Falke não prima pelo espaço para bagagem e os seus grandes 60 Cv estavam já reservados para nos levar adiante.

Como o estomago comanda a vida (já dizia o poeta), decidimos ir comer migas à Tenda D’el Rey em Évora, mas primeiro, tínhamos de ir ao hangar deixar o moto-planador preparado para o dia seguinte, comprar combustível, etc.

Findo o jantar fomos para o hotel lá perto dormir, pois o dia ia começar as 06:00 UTC+1.

Sábado 24 de Julho – Évora – Castelo Branco – Santo Tomé

Planadores e D-EMZO para fora do Hangar, plano de voo metido, Falke inspecionado, tudo pronto.

Descolamos pelas 07:15 UTC+1 com vento de frente de 10 nós, temperatura nos vinte e poucos graus.

Como já referi o Falke tem 60 Cv e tem de ser voado como planador (o que para mim até é melhor) mas não vamos ganhar nenhum concurso de climb rate. Como o nosso objetivo era poupar combustível, mas não chegar a Castelo Branco muito tarde fixamos a velocidade nos 120 kmh (IAS) e o ground speed era o que desse… 100kmh. Assim mantínhamos as rpm nas 2200 e lá íamos nós a gastar pouco mais do que nada.

Como era cedo as térmicas ainda estavam a dormir e portanto, demoramos 20 minutos a ganhar 100ft, no regime anteriormente referido, tentando estar entre os 1000ft e os 2000ft AGL.

O Falke tem instalado um ótimo sistema de Navegação LXNav eCopilot e eu equipado com o meu mapa das estradas Michelin ia indo conferindo a minha estimativa com o equipamento eletrónico, batendo sempre certo, modéstia á parte.

A estas velocidades e com tempo limpo não é difícil utilizar um mapa mesmo estando a pilotar.

Chegamos à belíssima pista de Castelo Branco 01h:30m depois de sair de Évora, tendo gasto 15L de Gasolina 98. Toma lá 152 e embrulha.

Enquanto o João foi comprar gasolina à bomba eu fiquei a ajudar um outro piloto a arrumar a sua bela Cessna 140 D-EPSL no hangar.

Está a começar bem este fim de semana Vintage.

Os outros companheiros de viagem José Miguel Silva e Rogério Bivar chegaram também vindos de Montemor-o-Novo no Rallye 893E do Nuno Cachadinha.

Descolamos com o vento a querer rondar para NW, apontamos a Penha Garcia e começamos a tentar subir para os 2000ft AGL sem abusar muito das rpm, já se começando a sentir uns bafinhos. Não chegamos aos 2000ft AGL (mas quase) e deu para passar para Espanha onde, como toda a gente sabe, as térmicas se alimentam de bocadillos e por isso pouco tempo depois de entrar em terras de Cervantes, já estávamos a subir a 2-3m/s.

Fizemos esta perna do voo sempre a aproveitar a energia das térmicas utilizando a técnica de golfinho quase exclusivamente, parando só para enrolar umas duas vezes. Fomos andando, ora voando um ora voando o outro que as 03h:30m entre Castelo Branco e Santo Tomé até passam rápido (se nos esquecermos das dores no rabo de ir sentado quase com as costas na vertical e com umas espumas muito… boas).

Sobrevoamos o aeródromo de Villacastin perto de Ávila (onde vimos um Ka7 a enrolar) e seguimos para Segóvia para aí tentarmos fazer um pouco de orográfica na montanha. Tentámos e fizemos, que o Falke não se nega a nada, mas como o vento estava um pouco de cauda a dita orográfica não foi bombástica, embora nos desse sempre 1 m/s.

LETP, D-KBIU arriving from Portugal, joining left Base runway 30.

Aterrados finalmente!

Tempo de arrumar o Falke e ir comer os bocadilhos ainda disponíveis que já eram poucos, beber umas cervejas, confraternizar etc.

Encontro Vintage que se preze tem de ter um primário qualquer seja Zoegling seja Sg-38 Schulgleiter, por isso junto à mesa dos comes havia este.

Este aeródromo é bastante simpático estando bem perto da montanha e dispondo de duas pistas convergentes e de uma pseudo-pista paralela á de asfalto, de capim para as aterragens. Os dois hangares de metal do tipo redondo são amplos e compridos proporcionando bastante arrumação. Não há vedações, portões ou coletes amarelos à vista… nem vi o número de emergência médica em lado nenhum. Ai se a ANAC descobre, valha-nos deus!

Como rebocador utilizam uma Pawnee de 235Cv (que quando chegamos estava com uma pane nos travões e por isso ainda ninguém tinha voado). Eventos onde acontece sempre alguma coisa com uma das aeronaves, tendo a organização de resolver antes que a malta comece a espumar… onde é que já vi isto?… O problema foi resolvido trazendo de Sória um Rallye de 235Cv e lá pelas 17h00m locais se começava a voar.

O sistema utilizado é bastante expedito e algo que pode ser replicado cá quando há muitos planadores para ir para o ar e outros tantos para aterrar. Os planadores encontram-se prontos para descolar uns atrás dos outros. O rebocador que está fora da pista, entra diz “tensando, tensando… remolcando!” e siga com o planador que já esta pronto.

Não há esperas ou gastos de combustível desnecessários. Os planadores que vêm a aterrar fazem-no ao lado da pista asfaltada no capim indo um carro (com cabo de reboque), buscar o planador.

O clube dispõe de ASK-21, Ka-13, SF-28 e Astir Cs, o que com um rebocador como a Pawnee é um instante a serem largados, mesmo com os 1100m de altitude do campo.

Neste encontro havia entre outros, um Ka-13 azul de Francesco Padovano, um Bergfalke II-55 de José Ignacio Colomo, um Grunau Baby III de Alan Sands e um SG-38, todos primorosamente restaurados. Para além destas joias havia um “hangar queen”, um Slingsby T-21 Sedberg de Encarnita Vazquez que eu e o João Rosa tínhamos o desejo de voar, mas dado o avançado da hora e o número de candidatos para voar fazia antever que neste dia seria impossível. Este planador apresenta lugares lado a lado e cockpit aberto, com uma performance de 20 e uma carga alar de 20kg/m2 é capaz de voos bem giros e já subiu em nuvem até aos 17000ft nas mãos de Derek Piggott.

Muitos de vocês se recordaram certamente do Jodel D9 CS-AXA feito por uns sócios do AeCP, mas se estiverem confusos de que estou a falar fica aqui um para avivar a memória. Este está imaculado e foi construído por José Carlos Barriero há uns 20 anos atrás tendo levado 6 anos de grande dedicação. Falei com o Carlos sobre os aspetos da construção e pintura e passados tantos anos pasme-se com o estado do avião.

Vendo planadores antigos e não tão antigos (como um Grob 103 Twin III self-launch) o dia foi passando.

Ao fim do dia o Cachadinha levou o José e Rogério para jantar com a delegação portuguesa em Villacastin a bordo do Rallye e nós aproveitamos a boleia do Francesco para irmos largar as tralhas ao hotel e ir jantar.

Conversamos sobre o estado do Voo a Vela nos dois países e que fazer para que exista futuro para os planadores. Gostei do que ouvi e seria bastante interessante e proveitoso a comunidade portuguesa ouvir a sua experiência e como funcionava a sua escola (coisa que posso organizar).

Domingo 25 de Julho – Santo Tomé – Castelo Branco – Évora

O dia começou cedo e às 09:00 UTC+2 já estávamos a caminho do aeródromo. Pedimos gasolina 98 para o Falke e fomos lavar o moto-planador. O dia estava fraco, com bastantes cirrus e toda a gente torcia o nariz em relação ao dia de voo. Aproveitando esta calmaria foi-se buscar o Schulgleiter para se ir fazendo uns saltos. O planador tem um carrinho que engata na bola de reboque de um carro, contudo tem de ir alguém sentado no planador para que a cauda não vá a arrastar pelo chão.

Eu como já tinha acabado o tratamento de beleza ao Falke, fui-me aproximando para fazer parte da equipe de voluntários a puxar o elástico, vendo à medida que me aproximava, que alguns sócios se iam afastando do lugar… (aquela mesma sensação que tenho de cada vez que é para montar as asas do Twin ehehe ).

A primeira a voar foi a Sra. Encarnita que no auge dos seus 50kg subiu bem alto.

No que toca á operação é bastante simples. Pesos são adicionados ao planador para regular o CG, quatro pessoas agarram da cauda com um cabo, seis a oito pessoas em cada secção do elástico e toca de caminhar para tensionar o elástico ao som da palavra “caminar” e depois correr com a palavra “correr”. A pessoa que estiver no final de cada secção de “rebocadores” vai olhando para o planador e dizendo “correr, correr, correr…” até que o cabo se solte e possamos todos respirar. É importante que não paremos de correr até o planador estar solto, pois a primeira reação depois de se sentir o planador arrancar é afrouxar a corrida. O elástico é algo delicado e tem de ser trazido ao ponto inicial sem raspar no chão, o que envolve que as pessoas o tenham de levar em braços.

Depois foi a vez do marido da Sra. Encarnita que devia pesar uns 90kg e a coisa já foi diferente… a debandada de “rebocadores” foi evidente e cada secção já só tinha cinco pessoas o que era insuficiente. Lá se arranjaram uns voluntários á força e toca a repetir. Com o peso do dito senhor, bem que podíamos todos ligar as redutoras. O voo foi bem mais curto e a altura (porque não se pode falar em altitude) a que chegou foi bem inferior.

Nisto tudo, fizemos uns cinco ou seis voos e eu todo contente por fazer parte deste grupo cada vez menor de “rebocador de elástico”.

A meteo foi melhorando. Os cirrus começaram a dissipar e o vento passou a soprar fraco contra a montanha. Foram-se preparando os planadores de fibra de uma equipa francesa estacionada no local. ASH 25, ASW 20, Cirrus, Ventus etc e lá foram descolando, tendo ficando todos lá em cima, menos um ASW 20 abatido.

Descolam os Ka-13 do Club Loreto e de Francesco com a filha. Vamos preparando o Falke para estar pronto para descolar (eu ainda ia voar no Ka-13 e depois teríamos de abalar rapidamente para Castelo Branco).

Como uma sandes e meto-me dentro do planador, com o Francesco a dizer-me que no Ka-13 tem de se utilizar muito pé. Ok, sem problemas, já estou habituado ao Twin. Descolo atrás da Pawnee e cabreio com ela para nos alinharmos ao vento. Ganhamos altitude rapidamente e solto-me numa térmica enrolando normalmente utilizando ailerons e rudder… “no no no” diz o Francesco lá de trás. Faz e desfaz as voltas só com o pé, o manche é só para manter o nariz no horizonte.

A razão por trás disto é que o planador volta efetivamente melhor e mais rápido só com o rudder. Para uma pessoa sempre habituada a levar na cabeça para ter o planador sempre coordenado este procedimento faz uma certa confusão e é realmente difícil inibir a memoria corporal de meter pé e manche ao mesmo tempo. Mal ou bem lá subi 1000m AGL e fui para a montanha.

Apanhei mais uma térmica e passarinhamos um bocado, depois foi tempo de meter freios para descer pois a hora da partida estava próxima e o João estava á espera.

Para a aterragem o procedimento foi o mesmo que numa aterragem fora.

Fazer a downwind observando o ponto de toque (os números 30 da “pista” de capim), estabelecer uma ladeira constante (muito importante). Passando um pouco o início da pista, voltamos 45º para uma dog-leg, mantendo sempre a ladeira estabelecida. Se ficássemos altos abríamos um pouco o angulo para alem dos 45º, se a ficássemos baixos fechávamos para menos de 45º. Final e aterragem nos números.

O Ka-13 mostra-se um planador bastante giro de voar, um pouco sensível de profundidade (o que era normal, pois íamos na posição anterior do CG), ailerons responsivos, mas um pouco moles e rudder bastante efetivo.

É robusto tem alguma performance e muito agradável de voar. De que esperamos para ter um a voar em Portugal?…

LETP, D-KBIU departing runway 30

Iniciamos a corrida de descolagem, rpm nas 2800 e… papamos a pista toda. Lembram-se de eu dizer que a pista era a 1100m de altitude e que estamos a descolar ás 14:00 UTC+2 com uns 30 graus?

Relembram-se também de eu dizer que tínhamos pedido para ser abastecidos com gasolina 98 e que pagamos 1.80eur/l?… pois bem, a gasolina na verdade deve ter sido 95. Gracias Hermanos!

Fomos a custo para a montanha na esperança de apanhar uma térmica ou orográfica que nos safasse, pois a única forma de subirmos nestas condições era de esperar que a curvatura da terra a afastasse.

Térmica. Subir a 2m/s o João Rosa ganha mais um cabelo branco e quando estamos a 1500ft AGL rumamos a Segóvia sempre com ajuda da montanha. Passamos por uns abutres e parapentes e dentro em pouco tempo voamos confortavelmente a 2000ft AGL. Hoje havia muitas térmicas de 1-2m/s que nos ajudaram a manter a altitude com as rpm nas 2400 (se fosse 98 vínhamos a 2200).

Passamos Segóvia e começamos a descer até Fuentemilanos onde, nas imediações do aeródromo, apanhamos uma boa térmica de 3-4m/s e paramos para enrolar. Dadas umas 5-6 voltas estamos de volta a 2000ft AGL e rumamos a Villacastin onde voltamos a chegar baixos. Passamos o aeródromo e vemos uma data de planadores no chão e ninguém no ar.

A uns 2km a Oeste do aeródromo nova térmica de 3-4ms e de volta aos 2000ft AGL que correspondem a 6000ft MSL. O céu agora apresentava-se muito fechado na nossa posição e para Norte, havendo já chuva á vista na nossa rota. A Serra de Gredos à nossa esquerda, planície à direita carregada de nuvens a sete oitavos e duas colunas de água à nossa frente. As térmicas, essas ainda bombavam pelo que fomo-nos despachando, tentando passar entre as duas colunas de chuva vindas da serra de Candelarios. Passamos sem problemas e aviso o Cachadinha que ia descolar dai a vinte minutos que há chuva em rota.

O Céu para sul está ainda a quatro oitavos e está um dia espectacular para voar.

Passamos a fronteira em Monfortinho com um incêndio à vista. Se há incêndios é porque já estamos em Portugal! Esta nota devia vir no Manual VFR.

Aterramos em Castelo Branco com vento cruzado pelas 17:00 UTC+1 com o heli que combatia o incêndio em número dois. Afinal o incêndio era ainda em Espanha junto à fronteira.

Comemos, bebemos um café e abastecemos desta vez com gasolina 98 que tínhamos deixado de véspera e ás 17:40 UTC+1 descolamos para Évora. Pouco tempo depois de passar a cidade de Castelo Branco outro incêndio, desta vez a Oeste da barragem do Fratel. Estes incêndios andam mais depressa contra o vento que um Nimbus 4 carregado de água…

Nisa, Crato, Fronteira vão passando, chegamos a uma terra chamada Cano que o nosso amigo Ricardo Fernandes conhece bem, pois já lá aterrou “fora” na pista que agora sobrevoamos.

Num instante Barragem do Divor e Igrejinha á nossa direita e já deixamos o Lisboa Informação 123.755MHz e passamos ao AFIS de Évora 122.705MHz. Circuito pela direita RWY 01 vento de 280º com 14Kts e aterramos às 19:00 UTC+1 com o elogio do AFIS “boa aterragem, nem parecia que havia vento” quando saímos no taxiway. A modéstia do João Rosa falou logo mais alto, claro!

Fomos arrumar na placa ao pé do hangar, vendo o Rui Caseiro a dar brilho às asas do Lambada.

Arrumar tudo, fechar o hangar e às 22:00 UTC+1 estávamos felizes e cheio de fome, por isso fomos ao restaurante jantar…. Migas!

Bons voos.

Diogo Eira. Julho de 2021. Fotografias Diogo Eira e João Rosa.

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