Tal como na Era dos dinossauros, nestes tempos difíceis em que a Economia se fecha sobre si própria e entra em modo de sobrevivência, os gigantes supérfluos da Aviação são os primeiros a desaparecer. E para aqueles que já não voavam ou perderam o sítio para ficar, pior ainda.
A maquinaria tem um cariz efémero. Ao contrário de um monumento em pedra, concebido para ser capaz de permanecer séculos no mesmo sítio sem precisar de grandes manutenções, a maquinaria necessita de intervenção constante.
A dificuldade em manter a maquinaria agrava-se, exponencialmente à medida que o seu tamanho aumenta. Quanto maior for, mais dificuldade haverá em ser intervencionada, guardada e até mesmo movimentada. Mais mão-de-obra será precisa. Mais equipamento. Mais despesa. Maior espaço de armazenagem. Quando as despesas aumentam mas não existem fundos para a sua manutenção, o abate ao efectivo torna-se a única solução.
Devido ao período crítico da História que atravessamos, os gigantes de Aviação de outrora que conhecíamos e julgávamos parte do nosso dia-a-dia são condenados a um fim inglório e prematuro. Incapazes de gerarem dinheiro e operarem rentavelmente, estes aparelhos perfeitamente operacionais e em boas condições são levados para um aeródromo remoto para serem desmantelados sem cerimónia longe dos olhares do público.
Mas nem só os modernos Boeings e Airbuses morrem de pé. Se esta já era uma situação capaz de entristecer os apaixonados da Aviação, o quadro torna-se ainda mais negro no que toca a aparelhos de grande porte retirados de serviço e entregues a instituições. Nestes tempos de contracção da Economia em que tudo tem de ser rentabilizado, e sendo os aeródromos apetecíveis alvos de especulação imobiliária, estes monstros dóceis tornam-se em vítimas silenciosas que pela sua dimensão se tornam impossíveis de resgatar.
Uma coisa é guardar um jacto de treino L-29 desmanchado ao meio e sem asas nas traseiras do quintal (não sei de nada, nem conheço ninguém, estou só a dar um exemplo…), outra coisa é alugar um camião da TIR especial e contratar policias e fechar estradas para movimentar um bombardeiro Victor de uma base aérea para outro local. E passar semanas a desmontar e a montar o aparelho. Para ajudar à festa, a pandemia obliterou o que restava dos poucos voluntários que ainda iam aparecendo para ajudar. O triste fim para estes aparelhos só pode ser um.
Alguns (muito poucos) exemplares de grande porte e de valor avultado como o DC-6 G-APSA pertença de uma empresa no Aeroporto de Coventry agora vendida, conseguiram à última da hora encontrar um lar. Estas operações são avultadas e demoradas. Por exemplo, para realojar os dois últimos Blackburn Buccaneer em condições de taxiamento disponíveis no Mundo, o custo de transporte por estrada e protecção policial orçou em cerca de 20 000 Euros, tendo sido “poupados” os custos da desmontagem e montagem, feita por voluntários.
Pessoalmente, a maior dor de alma é sem dúvida a condenação do gigantesco Aero SpaceLines “ Super Guppy” Turbine (F-BTGV) do qual apenas existem quatro exemplares no Mundo, e no qual trabalhei como voluntário durante mais de dez anos. Utilizando todo o cockpit, asas, e traseira do extinto Boeing 377 Stratocruiser, este aparelho propulsionado por quatro turboprops Allison tinha anteriormente registo americano (N212AS) e foi comprado aos Estados Unidos pela Airbus para transportar fuselagens e asas, antes do aparecimento do Beluga. Este aparelho chegou a transportar peças para o fabrico do Concorde em Toulouse. Embora a importância e a singularidade deste aparelho mais do que justifiquem a sua preservação, este encontra-se em terreno emprestado, agora vendido.
O aeródromo foi comprado por uma empresa do ramo automóvel para servir de “garagem” ao ar livre, e embora um local alternativo esteja disponível, os meios necessários à desmontagem e ao transporte por estrada são proibitivos, atingindo cifras na ordem dos seis dígitos. Mesmo que houvesse verba para a movimentação, tendo aterrado aqui pela última vez pelos seus próprios meios em 1996 e incapaz de voar, seria agora impossível transportá-lo por estrada sem proceder a cortes na estrutura que danificariam irremediavelmente o aparelho.
Com uma dor imensa na alma, tenho de aceitar que este será mais um gigante que morrerá de pé. A mim só me resta não passar a menos de dois Km do aeródromo. E se calhar nunca mais lá ir. Na verdade, o que é que eu iria fazer a um parque de estacionamento de carros?
Mike Silva. Novembro de 2020. Fotografia por Mike Silva
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