Será seguro voar “nisto”?

De curiosos artefactos construídos por entusiastas com a prata da casa, até ao apertado controlo pelas agências de segurança aeronáutica dos dois lados do Atlântico, a história em busca da segurança em vôo é um capítulo pouco celebrado, mas talvez dos mais importantes da História da Aviação.

Evolução

É natural que nos primeiros tempos da Aviação, onde cada aparelho era construído individualmente de forma artesanal e apenas conseguia efectuar meia-dúzia de voos antes de se danificar,  não fosse necessário nenhum controle técnico ou de qualidade sobre os componentes e materiais utilizados, não tenham sido necessários manuais de reparação, e o conhecimento sobre a sua operação e manutenção fosse um assunto que se ia aprendendo com o passar do tempo através do processo de  tentativa-erro,  e tomando notas num bloco.

Com o aparecimento da Primeira Guerra Mundial e da estreia da Aviação num conflito armado, com a consequente produção em série e a necessidade de criação de estruturas de aprendizagem, construção e manutenção, surge em 1915 uma das primeiras tentativas para congregar todo o conhecimento sobre manutenção e operação de aeronaves numa só publicação, o Royal Naval Air Service Manual , que abordava temas tão diversos como a montagem de dirigíveis, prevenção de incêndios, preparação para o vôo, avarias e soluções, navegação em hidro-avião, aterragem, ou fotografia aérea. 

Os fabricantes de aeronaves por seu lado começavam também a fornecer instruções de montagem e blueprints com a nomenclatura e localização das peças. Muitos dos desenhos eram elaborados em tamanho real, o que ajudava na montagem, manutenção ou reparação.

Mas ainda não existia um standard na indústria nem certificação de componentes, e cada fabricante usava o material que bem entendesse,  proveniente das mais variadas fontes.  Esta prática, como sería de esperar, iria originar inúmeras falhas estruturais e de equipamento em vôo, com os inevitáveis acidentes fatais. A pressão da guerra adiou esta preocupação para o final do conflito.

Por volta dos anos 30 a indústria aeronáutica já tinha dado um salto qualitativo, com a generalização da construção em metal, desenvolvimento de aviónicos, aumento considerável da potência dos motores e generalização do transporte aéreo dos passageiros em massa. A complexidade da Aviação jamais poderia ser voltar a ser manuseada em cima do joelho.

A certificação de componentes e a criação de um mecanismo que assegurasse a confiança do utilizador tornou-se primordial e um requisito legal para qualquer estado de direito minimamente imputável e responsável.

Nascia assim o programa TSO (Technical Standard Order) que sujeitava os fabricantes a seguirem uma abordagem comum no fabrico de todos os componentes para a Aviação e a demonstrarem um processo de controlo de qualidade na produção do mesmo, com vista a atingirem um standard mínimo de qualidade.  A criação deste programa facilitou e libertou também muitos dos funcionários da Autoridade Federal de Aviação americana (FAA), para se concentrarem exclusivamente na aprovação de fuselagens e motores, no período movimentadíssimo que antecedeu à Segunda Guerra Mundial. 

É também por esta altura entre as duas guerras mundiais que a complexidade da Aviação torna impossível congregar todo o conhecimento de construção, manutenção, standardização e operação de uma aeronave numa só disciplina, e surge o estudo em separado dos procedimentos em vôo, conhecido como Standard Operating Procedures ( SOP) , que como o nome indica , iria criar uma esfera à parte que se iria debruçar exclusivamente sobre os cenários, efeitos, factores contributivos e soluções decorrentes da operação de uma aeronave.

Actualidade

O conceito do programa TSO da americana FAA seria aproveitado posteriormente na Europa para a certificação de componentes fabricados no velho continente, embora com a dificuldade acrescida de existirem diversos construtores em diversos países, o que dificultava o processo de standardização.

A criação da Agência Europeia de Segurança Aeronáutica (EASA) possibilitou a criação de um programa semelhante ao americano, designado por ETSO. Desde então ambos os programas dos dois lados do Atlântico têm trabalhado permanentemente no sentido de aceitarem recíprocamente as suas certificações, uma colaboração que conta também com a participação do programa congénere canadiano TTCA Canada Technical Standard Order (CAN TSO).  

A quantidade de informação disponível online sobre a certificação de equipamento tão variado como bancos, rádios, cintos, rodas, tubos de pitot ou até extintores portáteis, constituem um manancial importantíssimo de informação e uma ferramenta crucial para fabricantes, engenheiros, estruturas de manutenção e mesmo para o público em geral, sobre os requisitos exigidos a qualquer modificação ou montagem de qualquer equipamento numa aeronave. 

Ao vermos por exemplo um avião histórico a voar na Europa ou nos Estados Unidos, podemos estar certos que todo o seu equipamento obedece a um standard mínimo, constantemente revisto e actualizado desde a data do seu fabrico, ou desde a data de importação desde outra latitude. Inversamente, se lamentamos não poder ver um curioso aparelho nostálgico a voar, é porque provavelmente algum do seu equipamento não satisfaz os requisitos mínimos. Estabelecendo uma comparação com o mundo automóvel, o programa TSO nos EUA e Canadá, e o ETSO na Europa, funcionam assim como uma espécie de certificado de conformidade, ou como um Manual de um Centro de Inspecções Periódicas, garantindo um standard mínimo de segurança e de qualidade  na indústria aeronáutica.

Mike Silva. Julho de 2020. Fotografias meramente ilustrativas. Apoio Unsplash Photos for everyone.

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