Costas ao vento…

As gaivotas descolam e aterram de frente para o vento…e eu estou em crer que qualquer coisa aqui merece um sublinhado, uma explicação ou um pouco mais de profundidade…
Durante os actos de formação, os instrutores, para serem objectivos e com a finalidade de concentrarem a atenção dos futuros Aviadores em situações concretas, recorrem, ocasionalmente, ao isolamento de factos…

Por exemplo:
50Kts de VAI com uma componente de vento de frente de 20Kts dá uma VT de 30Kts!

Isto soa tão claro e tão “perfeito”, ainda por cima com 50Kts constantes de Velocidade-Ar nas asas, que nem o Instrutor nem o Aprendiz de Feiticeiro se atrevem a estragar…

Situação até muito parecida com os que vem de lá, ou seja, aqueles para quem 50Kts de VAI com uma componente de vento de cauda de 20Kts dá uma VT de 70Kts! Mas a “meia-verdade” que ficou por dizer foi que (desconsiderando factores menores) isto só se observa em, perdoem o sublinhado, situação estabilizada!

De facto, para analisar a situação de transição entre os dois cenários descritos (em cada um dos casos voltar 180 graus e passar a viver a realidade do outro) temos de incluir uma meia verdade dissimulada: A 1ª Lei de Newton! Sem grandes profundidades e resumindo, importa ter presente que os “corpos” são “preguiçosos” no que respeita a variações da sua quantidade de movimento [p=mv] relativamente ao “referencial Terra”, ou seja (correndo o risco de usar outro sublinhado), tendem a manter a sua VT.

Um exemplo que “cai” muito bem é o daquele passageiro que viaja de pé e, perante uma travagem, se estatela ao comprido… ou qualquer outro que o nosso senso comum nos relembrar.

Mas porquê este tema agora?
Porque este “facto” discreto, da nossa Aviação, parece estar presente, a par de outros factores, como parcela do factor “erro humano” ou “erro de pilotagem” associado a alguns acidentes a que lamentavelmente assistimos. A transição headwind/tailwind ocorreu em situações limite… Sejam elas por proximidade ao limite inferior de velocidade do envelope de performance do avião, ou em cenários de desenvolvimento vertical a baixa altitude.

Vamos, recorrendo a um exemplo limite, centrar a nossa atenção na passagem de uma situação nivelada e estabilizada de “vento de frente” para uma situação igualmente nivelada e estabilizada de vento de cauda. Para destaque das amplitudes, vamos usar, por convenientes, os valores: VAI – 40Kts / Componente de Vento – 20Kts / Velocidade de Perda – 30Kts.

Assim, se eu estiver em linha de voo a baixa altitude, com 40Kts indicados e 20Kts de vento de frente e rodar, por absurdo, instantaneamente, 180º no rumo… morri! E porque? Porque a VT de 20Kts (velocidade inercial antes da mudança de rumo) tende a manter-se “preguiçosa e relutante”, oferecendo resistência a transformar-se na nova VT de 60Kts… em sentido contrario (!), perfazendo um diferencial de 80Kts!

A minha velocidade indicada no momento da hipotética rotação instantânea passaria a negativa (!!) e estaria, nesse instante, a andar de costas com 20Kts de VT. Entretanto, a massa de ar permanece com o seu imperturbável deslocamento de VT igual a 20Kts no sentido inverso. Como a velocidade de perda é de 30Kts (positivos) indicados, só um (também hipotético) milagre (ou bater de asas no caso das gaivotas) me manteria sustentado até que o incansável hélice me “traccionasse” (obviamente na massa de ar) e, por persistência, vencesse a relutância inercial do aerodino, acomodando-o a nova VT de 60Kts.

Desculpem-me a complexidade e situação extremada do exemplo, mas… o que o separa de uma situação real? Apenas e só (!) a Razão de Volta, isto é, o numero de graus de variação do Rumo por unidade de Tempo, normalmente em graus por segundo. Logo, uma volta mais apertada (maior razão de volta), concede menos tempo de transição… maior massa e/ou maior velocidade, dificultam a transição… E se o fenómeno se passar no limite inferior de velocidade do envelope de performance, com aumento de Factor de Carga (g) e altitude insuficiente… a “coisa” não vai correr bem!

Assim, não surpreenderá que numa volta nivelada de 180 graus a partir de, por exemplo, uma situação de vento de frente, usando os dados do exemplo anterior, se assistisse a uma redução inicial da VAI para um valor expressivo abaixo do normal (40… 39… 35… 32…) para uma recuperação gradual posterior.

Provavelmente dissolveremos “as culpas” dessa redução de velocidade no expectável aumento de resistência induzida durante a volta, o tal que justifica um “ajuste” de motor se a volta for prolongada… no entanto, estes factores são cumulativos.

Não sei se estarei a ser convincente…

Dêem por favor uma espreitadela neste exemplos:
Exemplo 1 CLICAR AQUI

ou noutra escala,
Exemplo 2 CLICAR AQUI

ou ainda num relatório de investigação de acidente onde destaco o seguinte:
“… it is likely that the aircraft began a downwind turn to the right. This turn is significant, as the aircraft would be maneuvering from a high indicated speed/low groundspeed condition when heading into wind, to a low indicated speed when turned downwind. If the turn is made quickly, the effect of inertia may not allow the aircraft’s speed to increase sufficiently to maintain flight. This will result in a substantial loss of lift across the wing precipitating an aerodynamic stall. A downdraught will exacerbate this situation. It is likely that this may have occurred in this particular case.”

Infelizmente, agora tudo parece mais evidente!

Urge então sublinhar as situações de risco:

• Voltar para a pista a partir da linha de subida inicial, perante uma falha de motor à descolagem, em vez de aterrar em frente a progressão para a pista é nula durante a volta havendo exclusivamente perda de altitude… agravada pela tentativa de recuperação da velocidade perdida devido a falha, atitude do avião e efeito de surpresa, culminando invariavelmente na tentativa infrutífera de recuperação de uma picada com vento de cauda, de onde sairia uma intenção de aterragem com, também, vento de cauda. Esta tipologia resulta normalmente em colisão violenta com o solo… seja por perda de sustentação a baixa altitude ou por incapacidade de recuperar da picada com alta energia e vento de cauda. Isaac Newton esteve a bordo mas não demos por ele!

A decisão segura, mesmo em terreno não preparado, com uma pequena inflexão a um lado ou a outro, deverá ser aterrar em frente! Esta indesejável situação é normalmente evitável com uma sólida auto-disciplina de checklist: purgas, filtros e válvulas de combustível, verificação de magnetos, experiência de motor e controlo de temperaturas antes da descolagem.

Sugestão: Aterre em frente!

• Voltar para situação de vento de cauda após descolagem – Efeito de regressão da VAI, agravado pelo tendencial aumento de intensidade do vento em altitude. A potência está aplicada, logo, não haverá suplemento disponível… degradação do gradiente de subida e redução da margem de separação a obstáculos. Coloca o Aviador numa situação fragilizada e desnecessária, restando-lhe a alternativa de aterrar com vento de cauda em terreno não preparado em caso de falha de motor nesta fase. Ora podendo voltar, após a linha de subida, para uma situação de vento de frente, muito mais conservadora do ponto de vista de segurança, não vejo porquê a primeira opção…
Sugestão: Após descolar mantenha-se com vento de frente até ter altitude de segurança!

• Voltas apertadas a baixa altitude Pelo elevado risco de colisão com o solo, são absolutamente desaconselhadas, especialmente em situação de vento moderado, pela perturbação orográfica e porque, também neste caso, lá teríamos de conversar com o Isaac…Newton! Acredito que esta aqui a justificação da maior parte das colisões com o solo resultantes de voltas apertadas a baixa altitude.
Sugestão: Não executar voltas apertadas a baixa altitude, principalmente se estiver vento moderado.

• Perna base com tailwind (vento pela cauda) – Se não forem tomadas as precauções adequadas, a situação é potencialmente perigosa… A proximidade do solo e a VT elevada encarregam-se de nos fazer “sentir” uma velocidade-ar elevada. Nesta altura os olhos “prendem-se” na progressão e na pista, perante a, já óbvia, probabilidade de ultrapassagem do enfiamento da Final. O acto instintivo seguinte será considerar que a situação esta “controlada” e, insensíveis ao amolecimento de comandos, “apertar” a volta para a Final (!). Se a situação for levada ao extremo, a escassa altitude encarregar-se-á de a tornar fatal.
Sugestão: Afaste a Perna de Vento de Cauda, antecipe a volta para a Final e mantenha inter-verificação assertiva da VAI. Se ultrapassar o enfiamento da Pista, borregue e faça novo circuito.

• Finais com baixa velocidade terreno – Parece auto-explicativo… se aterramos de frente para o vento, logo, há-de existir diferença entre a VAI e a, logicamente menor, VT. Hoje em dia, com o advento e vulgarização do GPS, este fenómeno é evidente… Basta ler os nossos 40Kts indicados no Velocímetro e compará-los com os 20Kts de GS no GPS. Tendo disponibilidade, deveríamos dar-nos ao “requinte” de inter-verificar estes 2 parâmetros durante todo o processo de aproximação (circuito) e aterragem…Vejamos: é conhecido que a intensidade do vento (regra geral) diminui junto a superfície… Ora de acordo com a 1ª Lei de Newton (voltando ao tema da resistência a mudança da VT), que acontecerá se, com 20Kts de VT nos “fecharem a torneira” do vento?? Caímos de maduros e os motivos são vários:
A tracção do hélice na massa de ar, que faria com que o avião se acomodasse a nova (maior) VT, é pouco eficiente devido ao baixo regime do motor;
A redução da intensidade do vento com a aproximação ao solo (Final Curta) poderá ser um fenómeno discreto e gradual;
A percepção da situação e sua correcção (aumento de potência) nem sempre são atempadas. Dependem da inter-verificacão dos instrumentos internos, numa fase em que a concentração do Piloto está quase exclusivamente nas referencias exteriores e na Pista.

Sugestão: Se o Vento for moderado, aumente um pouco a VAI na Final, até que a VT esteja confortavelmente acima da Velocidade de Perda, no limite, igual à VAI de aproximação sem vento. Junto ao solo, os 2 valores deverão aproximar-se, mantendo-se a diferença da componente longitudinal do vento real à superfície.

Aviadores!
• A baixa altitude está presente em todas estas tipologias…
• Em situação de vento moderado, o nosso avião precisa de tempo para se acomodar às variações de VT provocadas pela variação de Direcção, passando por situações de instabilidade aerodinâmica. Algumas, pela conjugação de factores, podem ser fatais…
• Aprendendo com as gaivotas… a baixa altitude, manterão a opção de salvaguardar a aterragem de frente para o vento!

Bons voos!

António Rocha in Revista APAU VOAR #9. Desenhos de António Palma. Republicado CAVOK.pt em Abril de 2020. As fotografias deste artigo são meramente ilustrativas e promovidas por Luís Malheiro e Unsplash

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