A menos que sejamos saudosistas ou revivalistas já não usamos máquinas de escrever nem aqueles telefones clássicos com disco. Também já não usamos máquinas a vapor nem cassetes e já deixámos há muito de usar o tão típico Walkman dos idos oitentas.
Então, porque é que quando falamos em voar e navegar continuamos todos a depositar uma fé quase cega nas cartas aeronáuticas impressas (vulgo papel)?
Na era em que vivemos estamos rodeados de tecnologia e sistemas de informação. A maioria de nós consegue tirar do bolso aparelhos com capacidade computacional maior do que aquela que foi necessária para colocar Neil Armstrong na Lua.
Mas, quando falamos em navegar, quer se use um avião cheio de televisões ou um avião equipado com os modestos e fiáveis instrumentos tradicionais, teremos sempre um conjunto de aviadores que são céticos assumidos e perentórios inflexíveis na convicção de que o papel é muito mais seguro que os equivalentes meios eletrónicos.
Note-se que a intenção não é fazer nenhum tipo de apologia a “aipédes com ápes para tudo e mais alguma coisa”. Há coisas que a tecnologia não prevê e existem procedimentos que devem estar armazenamos no melhor computador que usamos a bordo (o nosso cérebro).
Acerca deste assunto convido todos os senhores leitores a reverem este belíssimo artigo do Mike Silva: Cábulas que salvam vidas. A quem quero publicamente expressar a minha admiração pela fantástica expressão que dá titulo a este artigo e por gentilmente me ter autorizado a usa-la.
Mas afinal qual será a opção mais segura, ou mais prática de usar em voo? Ápes ou papel?
Ápes de navegação: a garantia de que temos a informação atualizada
Uma das coisas que abona a favor dos meios eletrónicos de navegação é, sem sombra de dúvida, a sua facilidade de atualização.
O mundo está em constante mudança. Hoje a um ritmo tal que o torna quase impróprio para cardíacos.
Com uns quantos toques ou cliques (e desde que as facilidades de comunicação estejam asseguradas) é quase certo que teremos sempre a informação mais atualizada das cartas de navegação que precisamos de usar.
E nem temos de nos preocupar com a atualização, quase todas as aplicações de navegação tem um alerta que nos informa se estão devidamente atualizadas (ou se existe uma nova versão a que precisemos de dar atenção).
Garantia de flexibilidade
A flexibilidade das aplicações eletrónicas é ainda melhor que a das cartas em papel.
Com o tamanho do nosso “jardim à beira mar plantado” e com a autonomia da aviação que praticamos, quase não são precisas as preocupações da gestão de cartas aeronáuticas.
Ou porque não saímos do “ninho” e praticamos o chamado “tirar água à nora” ou porque a nossa máquina tem autonomia suficiente para fazer norte-sul ou este-oeste. Acredito que bem mais de 90% dos senhores aviadores (de ultraleves subentenda-se) só precisem do mapa de Portugal. Ou não precisem de todo depois de umas quantas horas de voo…
O mesmo não se aplica a outros aviadores que, partilhando da mesma língua, voam em estados do tamanho de França. Onde o espaço aéreo pode “não caber” numa folha A0 à escala aeronáutica habitualmente usada.
Ou ainda outros que utilizam a sua máquina para fazer voos internacionais de alguns milhares de milhas.
Qualquer um deles, ao utilizar um “kit eletrónico” poderá usufruir da capacidade para sobrepor camadas de informação tais como NOTAM’s e dados relacionados com o tempo (clima).
É claro que esta capacidade pode ser simulada com acetatos em cima das cartas aeronáuticas ao bom estilo militar do tempo das ex-colónias.
Mas convenhamos! Não é nada prático!
Toda a informação num único sítio
Se voarmos com papel teremos a bordo, no mínimo:
- Carta do sítio de onde descolamos, para onde vamos e carta que contenha a rota;
- Quando aplicável, os procedimentos de chegada e saída dos aeródromo ou campo de voo de origem, destino e alternantes
- Como o Seguro morreu de velho ainda teremos uns papeis com as frequências, contactos, QFU’s, altitudes etc…. etc… .
Claro que se só praticarmos o “tirar água à nora” caracterizado por um voo local, a maioria das vezes sem necessidade de plano de voo e cujo afastamento ao “ninho” são uma meia dúzia de milhas nada disto faz sentido.
Mas se somos adeptos de umas sardinhas “à Portimonense” e de uma boa “foda á Monção”, se temos um “irmão” que quase todas as sextas-feiras tem um cozido à portuguesa em cima da mesa, se gostamos de um belo presunto de chaves ou se sabemos onde encontrar um “arroz de perdiz com míscaros” (quem não souber deve contactar o aeroclube de Viseu) então sabemos que, para lá chegar, teremos de passar em espaço controlado e que o aeródromo de destino tem procedimentos de entrada e saída no circuito.
E pronto… lá vamos nós para o site da NAV sacar a última atualização do manual VFR… emenda 33 de 2017 aplicável a partir de errrrrr…..
Dentro do manual VFR está a carta de aproximação…. imprimir… dobrar, (é melhor levar duas não vá alguém precisar!)
Uma trabalheira…
Com os meios eletrónicos torna-se tudo mais simples. Abrir aplicação, menu, atualizar. Já está…
E, mesmo que em voo, haja uma necessidade súbita e não prevista, de alterar alguma coisa… a informação, se não estiver lá… está a um download de distância.
Aipéde e ápe: é preciso saber utilizar
Os mapas eletrónicos não vão servir de muito se o nosso melhor computador (o cérebro) não estiver treinado para os usar.
Estar a olhar para um mapa eletrónico como “um burro a olhar para um palácio” não traz nenhuma vantagem. Antes pelo contrário.
Em nenhuma circunstância devemos colocar-nos a nós ou terceiros em perigo por não saber utilizar um gadjet.
A investigação de acidentes na aviação comercial está pejada de relatórios sobre má utilização de automatismos… (Atenção!)
O grande problema dos eletrónicos é, talvez, a quantidade massiva de informação que podem ter e/ou apresentar.
Se pretendemos voar “paperless” (eh eh mais um termo espetacular) então o melhor mesmo é investir algum tempo (note-se que escrevi investir em vez de perder, propositadamente!), on the ground, a perceber como funciona a ápe e o aipéde.
Em caso de dúvida pergunta-se a um amigo!
Se ainda assim continuarmos com duvidas… Usamos o papel, seja ele a carta aeronáutica ou o manual de utilização.
Então e se ficares sem bateria? “No juice no joy”
Esta é a “problemática por excelência”. Se a bateria “morrer” ficamos à deriva, certo?
Bem, nem por isso! Principalmente se estivermos preparados.
Os nossos amigos marinheiros costumam dizer que “quem vai para o mar avia-se em terra”. E têm muita razão!
Se passarmos numa loja de eletrónica ou uma “grande superfície”, de certeza que encontramos um “power pack” com energia suficiente para as horas de voo que precisamos. Claro que convém não esquecer os cabos de ligação. Na dúvida, compram-se dois. Assim, a probabilidade de ficarmos sem energia em voo “é quase zero”.
Ah é verdade… nem vale a pena queixarmo-nos do preço… Há almoços que ficam mais caros (basta optar por uma saladinha e mantemos o orçamento e fitness no sítio)
Então e se “a coisa” se parte?
Mais um problema! Se deixarmos cair o “aipéde”. Lá se vai o vidro.
Dirão os mais “velhos do restelo”:
– …é desta! Não tens argumentos!
Pois não! De facto, se o vidro partir não há remédio… mas a probabilidade de termos no bolso um smartphone (ainda que modesto) onde a mesma aplicação possa ser carregada é bastante elevada.
Portanto, embora seja mais pequeno, mais lento e menos ideal o certo é que… Funciona! Mesmo!
Mas atenção aos cabos de ligação e aos carregadores. Habitualmente os cabos e os carregadores são o elo mais fraco dos kits eletrónicos. Felizmente podem sempre ser comprados extras, sem que isso cause grande dano ao nosso orçamento.
Os papéis não ficam com ecran preto nem azul que é como quem diz : “ Paper Charts Don’t Crash!”
Depois de rever os altos e baixos das aplicações eletrónicas sejamos francos quanto à realidade dos mapas em pape!:
Eles não avariam: não “crasham”! Ponto final.
Quer dizer… a menos que tenhamos de lavar o avião e ninguém se lembre que os mapas estavam dentro de um compartimento que não é impermeável.
Garanto-vos, por experiência própria, que o “ecrã” fica mesmo muito difícil de ler.
Voltando ao eletrónico…
Sim! Mas temos de estar preparados para utilizar o procedimento universal que resolve 90% de todos os erros de eletrónica.
O procedimento DVL (Desligue e Volte a Ligar) funciona em tudo, desde televisores até centrais nucleares. (O caso de Chernobil está incluído nos 10%, infelizmente)
Sabemos exatamente onde estão!
Quando falamos de cartas de navegação sabemos exatamente onde é que elas estão. Não precisamos de andar a percorrer menus para os encontrar. Estão, de certeza, a bordo e no bolso tal…
O problema surge quando vamos para o ar com eles arrumadinhos. Seja na bagageira ou por baixo do banco do passageiro para não ocupar espaço… ou em qualquer outro sítio não acessível imediatamente a partir do posto de pilotagem. Quase sempre atrás das costas do piloto ou passageiro (quase….)
Nesse caso há uma grande probabilidade de ter de fazer umas caretas, deixar cair os Headsets e dar uma “folguinha” ao cinto de segurança
Entre o mexer o corpo e a cabeça e o abrir o mapa temos o ouvido interno “ás voltas” e podemos correr o risco de cair numa situação de desorientação espacial.
Se vamos usar papel, o melhor mesmo é garantir que está onde precisamos dele.
No caso dos eletrónicos o botão de ligar é bem visível. E no caso dos “aipédes” o icon também é bem visível.
Então o mapa é de que ano?
Mas quem é que não gosta de atualizações? Qualquer aviador aguarda ansiosamente pela nova versão das cartas aeronáuticas? Certo?
Mas quem é que não voa com a sua velha e fiável Jeppsen de 2013 e aguarda secretamente por uma atualização mais contemporânea?
Mas o senhores da Jeppsen são uns “sacanas”! Não é que deixaram de imprimir a carta de Portugal. Se calhar querem promover a sua edição eletrónica…
Felizmente encontram-se edições mais recentes aqui.
Voar como uma carta desatualizada não é compatível com os parâmetros de segurança que todos defendemos.
Então e se quisermos ir mais longe?
Esta é uma dificuldade real. Se pretendermos atravessar vários países é bem provável que tenhamos de encomendar cartas aeronáuticas. E mesmo na idade da tecnologia da informação teremos de esperar algumas semanas para que o mapa que encomendámos chegue à nossa caixa postal.
Felizmente, somos bastante cuidadosos e fazemos planeamentos com bastante antecedência pelo que mais duas menos duas semanas não farão qualquer diferença!
(Notaram o tom sarcástico do ultimo paragrafo?)
Então e se o perdermos o mapa?
(Vou abusar da generosidade do Mike Silva e dar-me ao desplante de sugerir que coloquem a seguinte música de fundo antes de continuar a ler este artigo.
Mike, desculpa lá… pah!!!!)
Mais um problema… hoje é só problemas!!!…
Então e se perdermos o mapa? O mais certo é nem sequer se saber que se perdeu até que se precise dele.
Então e se tivermos a sorte de voar uma aeronave onde sabemos como é ter os cabelos ao vento (ou no meu caso a ausência de cabelos ao vento)… ???
…e se o mapa “resolver” voar a solo?
Upsss!….
Até ao momento ainda não conheci nenhum piloto que ande com duas cartas aeronáuticas a bordo… ou se anda não diz a ninguém! (ou são de anos diferentes).
É claro que, em todo o caso, podemos sempre contar com a preciosa ajuda dos controladores que podem sempre ajudar:
– Charlie Sierra … (qualquer coisa que agora não interessa), Lisboa. Confirm, please, you’re asking vectors to Marrocos?
São ou não são amigos?!
E então, qual é a melhor opção?
E agora? Qual e a opção mais prática para as cartas aeronáuticas?
Enquanto o papel continua a ser uma opção sólida, não é nem tão prática nem tão confiável quanto os seus equivalentes eletrónicos.
Atualizações quase instantâneas, acesso a mais e melhor informação e capacidade de backup são os principais trunfos dos mapas eletrónicos.
Por outro lado, os meios eletrónicos, continuam a sofrer de ausência de facilidade de utilização e por isso talvez continuem a comprometer o factor humano.
“A tendência de andar com o nariz colado ao ” aipede” faz com que cada vez mais os pilotos se desleixem a olhar para a carta e prepararem a navegação antes de voar. Pelo menos já tenho visto muito trambolho a fazer isso. É entrar no avião e ligar o botão. Nem sequer acautelam o combustível para uma possível aterragem alternativa noutro lado. Nem sequer sabem nem marcam onde ficam os locais de alternativa. Depois lá em cima nem cartas de papel lhes valem. O ” Aipede” e o ” App” mandam-nos ir em frente e eles vão, nem que seja um rio, montanhas ou floresta cerrada.” (…)
“A tecnologia é útil…até um ponto! Até ao ponto em que começa a ser uma maçada e a exigir que nos tornemos escravos dela com atualizações, obsolescência programada, etc.” [Mike Silva]
Mas não é o mesmo com o equivalente tradicional?
E enquanto muitos pilotos se sentem mais confortáveis a usar papeis eu gostaria muito de dizer-vos que guardo os meus no mesmo armário da máquina de escrever…
Mas…é mentira!
Continuam a bordo… à mão de semear ….
“Just in case!”.
Bom voos em segurança!
Carlos Miguel Costa. Publicado em Setembro de 2017 republicado Janeiro 2019. A partir de uma ideia original de Mark Swaine in http://www.boldmethod.com e com a colaboração e generosidade de Mike Silva. Fotos por Kristopher Allison Cédric Dhaenens Mark Jordan Kent Pilcher Matthew Brodeur Dose Media.
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