Levantar voo aos cinquenta

O que leva um indivíduo aos cinquenta anos, que nunca tinha entrado num ultraleve (lata, segundo a minha filha e traquitana segundo a minha mulher), a ir tirar a licença de piloto de ULM?

Serão certamente várias as razões para dar este grande passo, e foi certamente uma tentativa conseguida de abrir uma nova via, um novo horizonte, um novo desafio.

Foi muito interessante constatar que, mesmo apesar de gozar de meio século de vida havia, não obstante, como que um compartimento onde nunca tinha entrado.

Serão inúmeros os compartimentos onde nunca entrarei – por opção ou falta de tempo – mas este tem-se revelado e continua a ser um grande desafio que me dá enorme satisfação.

O curso

É sempre interessante aprender. Há matérias mais óbvias que outras, mas muitos dos conceitos só se entendem bastante mais tarde. A aviação é todo um mundo à parte, e no início é necessária alguma abstração para entender certos ensinamentos.

No curso teórico éramos cinco. Tinha um colega que já tinha feito o curso há uns anos e estava a repetir, um que tinha estado ligado a uma empresa de helicópteros, uma namorada de um piloto, e um jovem com menos vinte anos do que eu e nitidamente mais esperto.

Para mim era tudo novidade: conceitos, nomenclaturas, situações. Para os meus colegas nem tanto. Sentia-me um pouco peixe fora de água, ou melhor, no ar.

O fosso na sala era tal que quando se falou de diedro positivo e negativo, nem tive coragem de perguntar que raio era aquilo, tal era a clarividência.

Quem agiu mal fui eu.

Na minha primeira aula prática, na corrida para a descolagem, o instrutor a determinada altura começa a dizer: puxa, puxa, puxa.

Que raio, onde é que ele quer que eu puxe?

O resultado

Foi muito interessante – é muito interessante – passados quase seis anos, ver o enorme percurso já feito. Contudo, cada vez vejo mais caminho pela frente.

Aprendi muita coisa, numa altura em que é normal aceitar que “burro velho não aprende letras”. Talvez o maior ensinamento de todos é que existe uma infinidade de coisas que ainda não sei, uma infinidade de situações que é preciso conhecer e muitas experimentar.

É comum dizer-se que “o bom é inimigo do ótimo”. Na aviação o bom não chega, temos de ser ótimos. Não temos de fazer piruetas, não precisamos de fazer bonitos, temos sim de fazer tudo bem, temos principalmente de tentar, tentar e voltar a tentar fazer bem. Para mim era uma máxima, até aos cinquenta, “o bom é inimigo do otimo” e, nalguns casos, ainda continua a ser. Na aviação isso pode ser fatal. Esse registo leva a que o bom passe a ser suficiente e por aí abaixo.

O slogan correto na aviação deve ser: “o bom não chega, aspiramos ao ótimo”. Isto aplica-se, principalmente, se estivermos a falar de decisões e comportamentos. Aprender a descolar, aterrar, voltar … é fácil, até eu aprendi! Agora tomar as decisões certas nas alturas certas. Ter sempre a atitude correta. Na dúvida, não arriscar.

Ter a coragem de contar as experiências, pôr as duvidas que se levantam em cada voo a instrutores e pilotos mais experientes, isso sim é que é difícil. Neste caso eu sinto-me privilegiado. Já não tenho que provar nada a ninguém. Um jovem sente-se bem mais tentado a arriscar. É muito difícil um jovem “cheio de habilidade” perceber que a barreira é ténue e que o perigo está mesmo à espreita, é muito fácil errar.

Os erros na aviação, muitas vezes nem têm preço.

A luta continua

Fizemos o curso, já sabemos descolar, aterrar e voltar, somos pilotos. Às vezes até achamos que somos mesmo bons. E isso é que é perigosíssimo. É melhor admitirmos que não passamos de uns principiantes. Sinceramente são mais as vezes que me sinto principiante do que bom. Piloto aprendiz, parece-me a caracterização correta.

Pensem assim: enquanto tivermos necessidade de instrumentos no avião, ainda não somos bons pilotos, quando conseguirmos voar sem instrumentos então podemos começar a treinar para sermos ótimos.

Daqui a cinquenta anos falamos.

Higino Gonçalves. Publicado em Novembro de 2015, republicado Janeiro 2019. Fotos por Higino Gonçalves, João Oliveira, Luis Malheiro, Guilhermino Pinto.

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