O Incidente com os Galitos

A Paixão pela aviação, tenho-a desde que me conheço: desde tenra idade, fazia os meus aviões em papel e conseguia-os fazer voar mais tempo do que qualquer outro colega, na altura!

Depois, no Liceu D. Pedro V em Sete-Rios, fins dos anos 60, olhava para os aviões que passavam por cima do Liceu, tentava identificá-los…Normalmente, 707 ou 727 da TAP ou por vezes o Caravelle.

Já nos Estados Unidos e trabalhando nos serviços de terra da TAP em NYC/ JFK, pude entrar nos cockpits, “arregalando” os olhos perante tantos instrumentos… pareciam-me “mágicos”.

Mas o culminar da minha paixão por aviões e pelo voo advêm de ter tido o enorme privilégio de voar repetidamente nos cockpits de aviões da TAP: Um primo meu, o Comandante Félix Mendonça, na altura chefe de operações de voo da TAP e que voava constantemente para NYC, deixava-me viajar no cockpit!  Viajei muitas vezes nos 747 da TAP, o “Portugal” e o “Brasil” entre NYC e LIS, LIS e LAD… e tantos outros destinos. Mas essas são já outros histórias, que oportunamente relatarei.

Hoje, descrevo-vos um “incidente” que me ocorreu penso que, no longínquo verão de 1989 na Ria de Aveiro. Tendo o seu “quê” de anedótico, poderia ter sido bem mais grave! Vou chamar-lhe de “Incidente com os Galitos”.

Na altura, eu tinha um ultraleve anfíbio, o primeiro do seu tipo em todo o mundo. Era o Petrel, motor Rotax de 64 cavalos, que tinha comprado em França. Asa dupla, cockpit aberto de matricula CS-UBQ.

Ora, eu passava muito tempo em Aveiro, mais especificamente na Gafanha da Nazaré, onde tinha várias instalações de processamento de bacalhau. E como sempre (nada mudou!), o stress do dia-a-dia era enorme. Como tal, do que eu mais gostava, ao fim do dia de trabalho e naquelas tardes soalheiras e sem nortadas, era “dar um saltinho” ao nosso campo de aviação na Promaceira (entre a Gafanha da Nazaré e Aveiro), descolar e voar por cima da Ria, amarando (ou não), relaxando no voo com um bom par de auscultadores, ouvindo música, voando baixinho, enfim, “carregando as minhas baterias” como só quem voa compreende!

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E foi o que fiz naquele dia. Normalmente voava acompanhado, tinha sempre uma longa lista de amigos que queriam ir comigo. Mas desta vez, a minha ânsia de voar era tão grande, que fui sozinho!

A tarde estava perfeita. Sozinho no cockpit, sem o peso do pendura, o avião “pulou” da pista. Entro no espaço da Ria e rapidamente atinjo os 1000 pés. Por baixo, a ria parece-me um espelho com “pontinhos de cor” que são os barquinhos na labuta de pesca. Apodera-se de mim uma sensação de bem-estar tão agradável quase que me emociono. Tiro motor, faço uma “glissagem” endireito talvez a 20 pés… meto motor a fundo, subo outra vez. O avião está a comporta-se maravilhosamente. Sinto-me intimamente ligado à máquina, atinjo um estado “zen”. Olho para baixo, para a ria. Vejo uma espécie de “piroga”, com muitos remadores. Desço, para ver melhor.

Ahha! Trata-se de um “skiff” olímpico de 8 remadores mais um timoneiro. Estão a treinar. Devem pertencer ao clube dos “Galitos” em Aveiro, penso eu.

Apodera-se de mim uma sensação de alegria, uma espécie de “joie de vivre”… que se converte (muito rapidamente) na vontade de fazer uma “malandragem”. Imagino-me um piloto na segunda-guerra, com um torpedo no corpo do avião.

Subo “full power”! Posiciono-me na perpendicular do rumo do “skiff”, já levando em consideração a deslocação. Pico! Estabilizo talvez a doze pés. Motor a fundo, aponto directamente para o centro da embarcação, “full power”, “razo-a” mesmo a meio e depois puxo o manche!!! Subo quase na vertical. Entretanto largo uma enorme gargalhada de satisfação, e olho para trás. Vejo que criei alguma “comoção”. A embarcação está a oscilar lateralmente… Melhor me sinto! Mas, as oscilações são cada vez maiores…Olho outra vez!! A embarcação virou-se!! Os remadores estão todos dentro de água, consigo ver alguns punhos fechados apontando para mim.

E caio em mim “Meu Deus…que fiz eu??!!“.

Aterro quase imediatamente! Nem meto o avião no hangar. Corro para a minha viatura em cinco minutos chego a uma das nossas fábricas. Berro ao encarregado: “Arranja-me já 3 caixas de bacalhau Jumbo e mete na bagageira!”. São 75 kgs de bacalhau do mais caro…

Sei onde está localizado o Clube dos “Galitos”. Guio loucamente e chego lá num ápice. Saio do carro. À minha frente vejo um individuo, de sobrolho carregado, a olhar-me fixamente. Reconheço-o imediatamente. É o presidente…

Sun Tzu escreveu: “A melhor defesa é o ataque” e tento: “Oh Sr. Presidente, como está, passou bem? Calcule que houve um pequeno incidente na Ria, entre o meu avião e o “Skiff de 8” que estava a treinar, imagine!” O individuo não abre a boca, continua a olhar para mim, muito profundamente… insisto: “A culpa é toda minha, imagine que o motor do avião engasgou-se, fui forçado a descer e por coincidência passei por cima da embarcação… Mas olhe, pelo incómodo que causei tenho aqui três caixas de bacalhau do melhor, para a vossa cantina… não sei se sabe, mas trabalho em bacalhau, já nos conhecemos previamente, enfim….

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O Sr. Presidente retorque (finalmente!): ”Sei muito bem quem o senhor é, Dr. Pedro Gomes… e também sei muito bem o que é que aconteceu, já fui informado telefonicamente. O senhor devia ter mais juízo! O senhor revela-se um garoto!”… e por aí em diante, nem consigo escrever, ainda hoje estou envergonhado.

Fico portanto reduzido “a minha expressão mais simples”, mas ainda consigo retorquir: “Bem, eu apenas trouxe três caixas, mas posso mandar mais algumas”….

Entretanto, chega uma carrinha com 9 indivíduos completamente molhados. Não saem!!!… saltam da carrinha e sou mimoseado com várias expressões, bem conhecidas, algumas começam com a palavra “filho” e outras…. penso que vou levar no mínimo, uns chapadões. Preparo-me!!!!

O senhor Presidente dá um berro: “Calma que ele paga!!!” e aproxima-se de mim. Em voz alta diz-me então: “O senhor está a tentar comprar esta instituição por algumas caixas de bacalhau? Está a tentar subornar-nos?” Emito um “não, não!!!!” muito baixinho. Entretanto, estou rodeado de oito matulões encharcados mais o timoneiro (esse pequenino) com musculaturs verdadeiramente impressionantes.

O senhor Presidente persiste: “Olhe, o que senhor fez vai ter consequências! A minha vontade é telefonar para a polícia marítima e o senhor vai de choça!  Ou então deixo-o aqui ficar com estes atletas durante uns minutos! O que é que acha?” Eu respondo, timidamente: “As minhas mais profundas desculpas!”…

O senhor Presidente não desiste: “E o senhor acha que desculpas são suficientes, heinnn?? O senhor vai pagar caro a sua garotice!” E vira-se para os remadores: “Oh rapaziada, tenham calma que ele paga! Quem é que aqui já voou nessas gerigonças?” Ninguém responde… o senhor Presidente vira-se então para mim e com um ligeiro sorriso nos lábios (que me fez pensar que já me tinha safo!) verbaliza o seguinte: “Oh rapaziada, quem é quer dar uma voltinha no “patinho branco???” Todos levantam a mão… eu penso “Ok okkk são nove voos, despacho isso numa manhã, já me safei!!!

E aproveito para comentar em voz baixa e humilde, a amenizar: “Ah, o senhor Presidente já conhece o meu avião, chamam-lhe o patinho banco… não é?

O senhor Presidente quase que me berra: ”Claro que conheço, o senhor é bem conhecido da Câmara de Aveiro pelos disparates que tem feito, por exemplo, voar por cima do estádio de futebol, fazer rapadas em S. Jacinto quando lá estão os Páras, aterrar em estradas, voar a noite, o senhor não tem juízo! O que o tem safo é que o senhor lá com o bacalhau é bem visto na polícia, nos bombeiros, e trata bem os seus funcionários!! Mas quando voa o senhor é um perigo! Como é quer fazer? Chamo a polícia?!?!?” Respondi rapidamente: “Não, não, tenho o maior prazer em levar estes magníficos atletas a dar uma voltinha…

O senhor Presidente não pára: “E acha que isso é suficiente?! Não é!!” E berra para um dos remadores: ”Oh! Beltrano, levanta aí as caixas de bacalhau do carro e leva lá para dentro. E traz-me um bloco de notas!!!”. E depois para mim: “Olhe, para sair daqui sem ser para o hospital ou para a choldra, o senhor vai fazer o seguinte: Vai levar todos estes atletas a dar uma voltinha na sua geringonça, mais quem cada um deles quiser que vá dar uma voltinha também. Está de acordo?

Respondi imediatamente: “Sim, sim, com certeza”. E aí o senhor Presidente fez uma lista de pessoas que no sábado e domingo voaram comigo. Foram quarenta e oito descolagens, trinta e poucas amaragens (já não me lembro!) em dois dias, de um tempo maravilhoso em Aveiro. Voei com os remadores, com namoradas, tios, pais, avós e filhos. O senhor Presidente nem apareceu!!

Lá me safei. Aprendi alguma coisa? Claro que sim: É preciso manter a “cabeça fria” quando se voa!!!

Voltei a fazer disparates? Não! Mas décadas depois e com outro avião…os surfistas da Ericeira… Bem, mas essa é outra história!!

Pedro Gomes. Novembro de 2015. Fotografias meramente representativas de Luís Malheiro.

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