A propósito de 8.33 kHz. Dúvidas e teorias fantasiosas

Nas conversas de aviadores ultraligeiros temos ouvido muitas dúvidas e teorias sobre a modernização dos equipamentos de rádio das aeronaves que decorre até 31 de dezembro de 2017. Dizem uns que, não estando em Portugal o espectro das frequências aeronáuticas completamente saturado e voando as aeronaves só em Portugal, não seria necessário mudar os rádios de espaçamento de 25 kHz para os novos rádios com espaçamento de 8.33 kHz. Dizem outros que não é preciso mudar os rádios dos aeródromos porque o regulamento europeu atinente os exceciona. Apontam outros que na América não há nada disto e que os europeus são uns perfeccionistas gastadores. Em que ficamos? Temos ou não temos de modernizar os rádios das aeronaves da aviação geral?

O CAVOK.pt não pode ficar indiferente a estas dúvidas e, por isso, aqui estamos para esclarecer algumas das dúvidas sobre a substituição dos rádios das aeronaves.

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Primeiro um pouco de história:

O espaçamento de 8.33 kHz para substituir o espaçamento de 25 kHz nos rádios das aeronaves no espectro da faixa 117.975-137 MHz da banda de VHF, o chamado serviço móvel de radiocomunicações aeronáuticas, nasce em 1994 e 1995 por decisão da OACI/ICAO. Em outubro de 1999, 30 estados da região EUR da OACI (1) decidiram introduzir o espaçamento de 8.33 kHz no espaço aéreo acima do nível de voo 245 para diminuir o congestionamento da banda de VHF.
Em 2007 a Comissão Europeia decidiu regular a implementação do uso do VHF em 8.33 kHz no espaço aéreo europeu abaixo do FL 245 para FL 195 (2).
Em junho de 2012 a Comissão do Céu Único Europeu aprovou a obrigatoriedade do uso do espaçamento dos canais ar-solo abaixo do FL 195 ou seja, para todo o espaço aéreo europeu e para todas as aeronaves civis e a Comissão, em novembro do mesmo ano, determinou em regulamento a data de 31 de dezembro de 2017 para a obrigatoriedade de todos os equipamentos de radiocomunicações disporem de capacidade de espaçamento de 8.33 kHz.

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Agora as dúvidas:

É mesmo obrigatório ter um rádio com incremento de canais de 8.33 kHz a partir da frequência central e que possam também sintonizar as frequências com espaçamento de 25 kHz?

Sim. O regulamento 1079/2012 da Comissão (3) diz a abrir o seu artigo 4 nº 5 que “Os Estados-Membros devem assegurar que até 31 de dezembro de 2017, todos os equipamentos de radiocomunicações dispõem de capacidade de espaçamento de canais de 8.33 kHz…” Esses equipamentos devem também poder ser sintonizados para canais de espaçamento de 25 kHz como o regulamento especifica.

Mas, o mesmo nº 5 estabelece exceções. Quer isso dizer que os aeródromos estão incluídos nessa exceção e que não precisam de adquirir e instalar novos rádios?

A parte final do nº 5 deve ser lida com cuidado. Leia o que lá está escrito: “… com exceção dos equipamentos de radiocomunicações no solo utilizados pelos prestadores de serviços de navegação aérea.” (sublinhados nossos)

Para começar, é preciso saber quem são os prestadores de serviços de navegação aérea. Será que os aeródromos de Viseu, Chaves ou Évora, que operam cada um uma estação aeronáutica em 122.700 MHz, prestam serviços de navegação aérea? Não. O seu AFIS, como o seu nome indica, é um serviço de informação de voo do aeródromo. Viseu, Chaves ou Évora, não dão informações de navegação aérea na FIR de Lisboa. O único prestador de serviços de navegação aérea na Lisboa FIR e Santa Maria FIR é a NAV Portugal, entidade pública empresarial.

Por isso, os aeródromos terão de se reequipar com rádios com 8.33 kHz de separação, nos termos do regulamento (UE) citado.

Mas então a NAV não é também obrigada a ter equipamentos com 8.33 kHz de separação de canais de voz?

Claro que sim. Não só os vai ter como já os tem. Os equipamentos de radiocomunicações excecionados não são os de comunicações de voz ar-solo, são os que fazem as comunicações de superfície, no e para o solo.

A CIA 02/16 da ANAC no ponto 5.6 recorda mesmo que em virtude do nº 10 do art.º 6º do regulamento citado “todos os equipamentos de radiocomunicações de “ground” (solo) devem dispor de capacidade de espaçamento de 8.33 kHz”. Ground e não só, acrescentamos nós, pois a norma citada não é especificamente dedicada ao “ground”…

Então e as frequências, por exemplo dos aeródromos de Évora, Chaves e Viseu, vão mesmo mudar em 2017/18? O espetro aeronáutico em Portugal não está assim tão saturado…

As frequências podem até nem mudar, mas a largura de banda terá mesmo de encolher. Em 1 de janeiro de 2018 todos os equipamentos têm de operar com espaçamento de 8.33 e de 25 kHz. Durante o ano de 2018 a entidade responsável pela gestão do espetro do serviço móvel de radiocomunicações aeronáuticas, licenciamento das estações e alocação das respetivas frequências, a ANAC e nalguns aspetos a ANACOM por delegação, vão converter as frequências do serviço móvel de radiocomunicações de voz para 8.33 kHz. A 1 de janeiro de 2019 estará assim, obrigatoriamente, implementado na região EUR da OACI o novo espaçamento de canais de voz ar-solo em 8.33 kHz (AGVCS) (4).

São mesmo convertidas todas as todas as atuais frequências?

Não. Há frequências especiais que continuarão com 25 kHz de largura de banda e até com canais de guarda laterais como, por exemplo, a frequência internacional de emergência 121.5 MHz. Outras frequências que manterão a largura de banda são as tais comunicações de superfície de 121.550 a 122.917, a frequência auxiliar (SAR) (5) 123.100, a 123.450 comunicações ar-ar (em Portugal, infelizmente, atribuída à Proteção Civil…), e ainda frequências para VDL (6). O espaço entre as duas frequências de VDL será também alocado em 25 kHz sendo, na Europa, reservado para VDL (6).

O que é que acontece se, por exemplo, os aeródromos de Viseu, Chaves e Évora não se equiparem com novos equipamentos de 8.33 kHz?

Entram numa situação de clara ilegalidade com consequências desagradáveis para o diretor do aeródromo. Mas isso é o aspeto legal e penal. Vamos ao lado técnico: quando acontece dois pilotos falarem ao mesmo tempo em 123.750 MHz para o controlador de Lisboa Information (vulgo Lisboa MIL) este diz logo: – Duas estações ao mesmo tempo/two stations at the same time. Ou seja, o controlador não conseguiu perceber qualquer uma das duas transmissões. Elas interferiram-se mutuamente e o sinal resultante é impercetível.
Mas, quando três estações terrestres transmitem simultaneamente na mesma frequência, como nos aeródromos de Viseu, Chaves e Évora, apesar de terem a mesma frequência, 122.700 MHz, não se interferem. Um AFIS, como os de LPEV, LPCH e LPVZ, é concebido para um alcance de 15 NM até uma altitude de 3000 pés, sendo que a distância de coordenação entre as três estações não terá de ser maior de 5 vezes o raio da aérea coberta de cada uma delas (5*RA ou 5*RB) ou seja, ca. de 40 NM para garantir que o quociente do sinal das duas estações seja igual a 14 dB (D/U= 14 dB) (7). Isto, partindo do princípio que a potência radiada, a eirp (8), seja idêntica nas duas estações.

833khz

Voltando ao caso de os dois pilotos transmitirem simultaneamente na mesma frequência, dada a sua altitude de voo e apesar da potencia radiada ser de cerca de 6-8 W (mais o ganho da antena) o alcance da estação é superior a 100 NM. Por isso, o recetor do controlador não consegue discriminar os dois sinais simultâneos que se interferem.
Ora em 2019, se a tal estação terrestre não tiver um equipamento com 8.33 kHz de separação, poderia não conseguir receber um sinal percetível de uma comunicação de uma aeronave. E dizemos poderia, porque até lá todos os equipamentos terão, obrigatoriamente, de estar a funcionar com espaçamento de 8.33 kHz.

Pior é o caso de uma aeronave que voando sobre a Lisboa FIR a, digamos FL224, que usa a sua frequência privada para falar com o seu operador algures em França, imaginemos em 119.0833 MHz, no visor do rádio canal 119.085.

Ao mesmo tempo, um piloto desobediente transmite com um rádio antigo para a frequência de Lisboa Approach em 119.100 MHz. O que acontece? O piloto do avião em FL224 não conseguiria perceber o que lhe transmite o seu operador algures em França, devido à interferência do avião com o rádio obsoleto. Este poderia, teoricamente, estar a interferir em 12 frequências simultaneamente…

Por isso, quando alguém diz que em Portugal não precisamos de frequências com espaçamento de 8.33 kHz porque o espetro não está saturado, esse alguém esquece-se que Portugal não é uma ilha perdida no Oceano Pacífico e não compreende os problemas das interferências e intermodulações no espetro radioelétrico. Portugal, apesar de geograficamente periférico, é um país da região EUR com uma enorme FIR oceânica muito sobrevoada e que não pode perturbar o serviço móvel de radiocomunicações aeronáuticas onde existem mais de 9000 alocações de frequências. Para perturbar o sistema, bastaria um piloto desobediente (que, certamente, não voltaria a voar tão cedo).

Mas, as frequências com espaçamento a 8.33 kHz são mais complicadas de sintonizar nos nossos equipamentos…

Na verdade, no espaçamento de 8.33 kHz é melhor falarmos de canais já que o visor do rádio não mostra a frequência, o que seria pouco convivial. O visor passa mostrar o canal. Por exemplo: a primeira frequência após os 118.000 MHz é 118.0083 MHz. Mas, o visor do seu emissor/recetor mostra o canal 118.010 e a segunda, 118.0167 MHz, mostrará no visor o canal 118.015.

O quadro seguinte é esclarecedor.

 

Frequência (MHz) Espaçamento da Frequência (kHz) Canal #
118.0000 25 118.000
118.0000 8.33 118.005
118.0083 8.33 118.010
118.0167 8.33 118.015
118.0250 25 118.025
118.0250 8.33 118.030
118.0333 8.33 118.035
118.0417 8.33 118.040
118.0500 25 118.050
118.0500 8.33 118.055
118.0583 8.33 118.060
118.0667 8.33 118.065
118.0750 25 118.075
118.0750 8.33 118.080
118.0833 8.33 118.085
118.0917 8.33 118.090
118.1000 25 118.100
etc.

 

(fonte: ICAO)

Mas porque é que os proprietários de aeronaves de aviação geral que voam em VFR vão ter de suportar custos de 1.500-2.000 Euros sem terem nenhuma vantagem operacional?

A Comissão partilha deste seu ponto de vista e dotou com 10 milhões de Euros a Connecting Europe Facility para permitir aos proprietários que instalem novos rádios entre 7 de fevereiro e 31 de dezembro de 2017 beneficiarem de uma comparticipação de 20% dos custos de aquisição e instalação dos novos rádios. Para que o programa funcione é preciso apresentar propostas até 7 de fevereiro devendo o programa ser liderado pela ANAC. Talvez a APAU possa ajudar. E diz quem sabe que as candidaturas não são nada fáceis de organizar.

Então e posso comprar um rádio qualquer?

Todos os equipamentos fabricados a partir de 17 de novembro de 2013 dispõem da capacidade de espaçamento de 8.33 kHz. Precisam de ser equipamentos ETSO (9) e, para satisfazer o medonho apetite burocrático da ANAC, ter um EASA Form 1. O fabricante fornece o Form 1 e a certificação ETSO (9).

Então e…

Bem, por hoje basta de dúvidas. Obrigado pelo seu interesse. Se tiver outras dúvidas, email e o CAVOK que nós tentaremos responder.

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Notas:

1. OACI/ICAO, a agência das Nações Unidas que administra a Convenção da Aviação Civil Internacional.
2. A UIT/ITU, agência da ONU para as telecomunicações dividiu o planeta em 3 regiões. A Europa, o Médio Oriente, o Golfo Pérsico, a Federação Russa e a África pertencem à Região 1. A Região tem uma subdivisão, a região EUR que engloba os países europeus, os países da bacia mediterrânica de África e Médio Oriente e ainda o Iraque, o Quirguistão, o Cazaquistão, o Turquemenistão e o Tajiquistão.
3. Regulamento de Execução (UE) Nº 1079/2012 de 16 de novembro de 2012.
4. Air Ground Voice Separation Channel Implementing Rule, Eurocontrol.
5. SAR – Search and Rescue. Busca e Salvamento.
6. VHF Digital Link, em Modo 2 e 4.
7. D = Desired, U = Undesired. Sinal da estação desejada, sinal da estação indesejada.
8. Effective Isotropic Radiated Power, forma de medir a potência de saída numa antena. Diferente da potencia aparente radiada usada, por exemplo, no FM.
9. ETSO (European Technical Standard Order) aprova os componentes de acordo com o cumprimento das normas.
 

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José Manuel Nunes. 14 de Dezembro de 2016

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