Em Julho de 1972, uma aeronave Hawker Siddeley Trident (G-ARPI) despenhou-se logo após a descolagem do aeroporto de Heathrow. Apesar de felizmente não ter sido fatal para ninguém no solo, os 118 ocupantes não resistiram e a aeronave ficou totalmente destruída.
Um investigação detalhada determinou que o acidente ocorreu depois da aeronave ter entrado numa perda impossível de recuperar, derivada de uma resposta inapropriada da tripulação a uma inapropriada configuração das asas. Durante essa mesma investigação, uma das coisas que se tornou aparente foi que incidentes semelhantes ao indicado já ocorridos não tinham sido revelados e, mesmo com aqueles que tinham sido, não foram tomadas medidas apropriadas com esse conhecimento.
A investigação do acidente levou a um número de recomendações, a mais notável das quais foi que todas as aeronaves britânicas com peso máximo de operação acima dos 27000kg tinham de ser obrigatoriamente equipadas com gravadores de voz no cockpit. No entanto, a recém formada Autoridade da Aviação Civil (CAA – Civil Aviation Authority) no Reino Unido verificou que, como regulador responsável, não tinha o conhecimento automático das ocorrências relacionadas com a segurança, excepto se estas fossem tidas como suficientemente graves para necessitar de uma investigação independente (de acordo com o Anexo 13) ou se fossem reportadas como um risco de colisão no ar. Foi então decidido que deveriam existir requisitos para todos os eventos relacionados com a segurança, que permitissem o conhecimento da Autoridade dos mesmos, através das entidades envolvidas. Surgiu então o esquema do Reporte Obrigatório de Ocorrência (MOR – Mandatory Occurrence Report) em 1976.
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Às entidades foram dadas garantias de que o objetivo primário do esquema seria o aumento e desenvolvimento da segurança de voo e que, exceptuando em casos de negligência grave, a CAA nunca iria abrir processos respeitantes a violações da lei não premeditadas ou inadvertidas, que fossem reportadas através do MOR.
A Autoridade também deixou claro que, excepto em situações em que fossem necessárias medidas para manter a segurança de voo ou em casos de negligência na actuação, os empregadores deveriam abster-se de acções disciplinares ou punitivas, o que poderia levar a uma inibição dos reportes.
O esquema MOR foi sendo refinado ao longo dos anos e o seu sucesso pode ser verificado pelo facto de que a base de dados de ocorrências tem neste momento detalhes de mais de 250 mil incidentes, com a CAA a continuar a basear-se nos seus pressupostos iniciais.
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O conceito a que nos referimos actualmente como “Cultura Justa” (Just Culture), ao qual se refere o esquema MOR, causa no entanto também problemas. A definição de Cultura Justa do EUROCONTROL, “a cultura em que os operadores da linha da frente não são punidos por acções, omissões ou decisões tomadas por eles sendo proporcionais à sua experiência e treino, mas onde a negligência grave, violações intencionais e actos destrutivos não são tolerados”, é amplamente aceite no espectro da aviação.
Mas, por exemplo, no Reino Unido, aqueles que quebrem as regras de segurança da aviação podem também ser processados sob a lei criminal. Enquanto a maior parte da comunidade da aviação civil consegue ver os benefícios e, em alguns casos, exigir que os profissionais na área da aviação não sejam punidos por sanções criminais, outros, especialmente aqueles que se viram afectados em resultado de um acidente aéreo, têm uma visão diferente.
Certamente a comunidade da aviação civil sabe que não está acima da lei, portanto é necessária uma abordagem cuidadosa do assunto, para permitir que a Cultura Justa desempenhe o seu papel. No entanto, mesmo após estar sedimentada, é necessário um cuidado constante, já que basta apenas um evento para que anos e anos de trabalho construído sejam destruídos.
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Os benefícios da Cultura Justa deviam ser senso comum para uma indústria como a da aviação, que tem um registo de segurança invejável. No entanto, não só existem alguns descrentes na indústria, mas também se verifica uma grande resistência para que o conceito seja aceite pelo mundo exterior. Para que esta aceitação cresça, são necessárias evidências dos seus benefícios que possam ser apresentadas aos que não estão convencidos, especialmente aqueles em posição de poder, regulamentares e judiciais. Apesar da enorme quantidade de dados MOR recolhidos, tais evidências não são fáceis de encontrar e dois incidentes graves ocorridos na década de 90 mostram que os significativos avanços a nível de segurança apenas seguem as investigações dos incidentes graves.
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Em Junho de 1990, um BAC One Eleven da British Airways sofreu uma descompressão explosiva enquanto passava os 17000 pés em subida. Apesar da aeronave se ter mantido controlável, o comandante foi “sugado” do seu lugar, ficando preso na fuselagem com metade do seu corpo fora da mesma, onde se manteve até à aterragem da aeronave… 22 minutos depois. Demonstrando uma perícia assinalável, o co-piloto executou uma descida de emergência e divergiu para um aeródromo próximo. A investigação conduzida focou-se primariamente na causa relativa à aeronavegabilidade no evento, notando também algumas deficiências no serviço ATC providenciado à aeronave após o ocorrido na aeronave e respectivo reporte de “Mayday”, já que o controlador que inicialmente prestava o serviço não facultou ao co-piloto toda a assistência apropriada.
Durante o subsequente inquérito a este controlador, este referiu que se sentiu sobrecarregado com o evento e que não conseguiu lidar com isso. Estas declarações foram prestadas com o conhecimento de que a política de Cultura Justa vigorava, pelo que o controlador poderia dar uma descrição franca e completa do ocorrido, sem medo de ser acusado ou de acções punitivas.
O facto que um indivíduo bem formado pudesse demonstrar este tipo de problemas numa situação de emergência, levantou preocupações sérias. Foi determinado que o programa de treino aprovado não preparava os controladores para lidar com situações de emergência e que esta falha ainda não tinha sido destacada durante o tempo de serviço pós-treino. Por conseguinte, uma das oito recomendações da investigação passava por colocar os alunos a trabalhar em situações de emergência, tanto de forma teórica, como prática, não só em treino, como com refrescamentos após a qualificação.
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O segundo incidente ocorreu em Fevereiro de 1995, com um Boeing 737 da British Midlands Airways. Neste caso, surgiram avisos na aeronave da rápida perda de óleo em ambos os motores, seguido por avisos de baixa pressão do óleo. Quando o comandante pediu o regresso imediato ao aeródromo de partida, o controlador (em treino nesse sector), autorizou o pedido, mas assinalou que outro aeródromo passível de ser alternante se encontrava mais perto da posição da aeronave. O comandante aceitou então a alternativa e com toda a informação prestada pelo controlo, foi efectuada uma aterragem em segurança 9 minutos depois.
Com a aeronave no chão, foi detectado que na manutenção efectuada no dia anterior tinham sido retiradas duas tampas nos motores que não tinham sido substituídas, o que permitiu que o óleo escapasse. A investigação determinou que o controlo de tráfego aéreo tinha providenciado toda a assistência devida à aeronave e que o controlador tinha recebido o refrescamento de treino para estas situações – que tinha sido introduzido nos manuais após o incidente de 1990 referido acima.
Pode ser discutido que o bem sucedido resultado deste desastre potencial e a salvaguarda de mais de 100 vidas se deveu à aplicação dos princípios da Cultura Justa.
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Tradução e adaptação João Queirós. 02Abril16. As fotos deste artigo são meramente ilustrativas provenientes dos ficheiros da US Navy Air Traffic Controllers image files.
Artigo original HINDSIGHT MAGAZINE Ian Weston by EuroControl sob autorização para o cavok.pt
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