Incidente na Pateira de Fermentelos

Artigo de Opinião – Pedro Gomes

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Após o “incidente com os Galitos”, o meu primeiro artigo, passaram-se alguns meses. Estamos em pleno “S. Martinho” ainda em 1989… Estive ausente, a controlar e a carregar Bacalhau, na Noruega. Foram quase dois meses de trabalho muito intenso, sem fins-de-semana, uma escravidão.

As saudades de voar são mais do que muitas… Chego a Portugal, “gasto uns dias” na nossa sede, e FINALMENTE vou a Aveiro, onde temos as nossas fábricas… O dia passa muito devagar, só consigo pensar em voar. Acabadas as reuniões, por volta das 17.00 estou “em dia”. Pergunto aos meus colaboradores mais chegados: ”Quem quer ir voar?” Levantam-se “muitos dedos”. Escolho um.

Vamos para a Promaceira. Está lá o meu querido amigo e antigo instrutor, o Sr. Capitão Ferreira: “então, cheio de saudades de voar humm?” Respondo “Nem imagina!” “E então, onde vai?”. Respondo: “Á Pateira (de Fermentelos), é rápido, uma amaragem, relaxar, dar gosto ao dedo…” Responde: “OK, é rápido, fico a sua espera, depois vamos jantar?” Respondo afirmativamente.

Tiramos o avião do hangar. O tempo está maravilhoso. O fumo dos cigarros sobe na vertical. O Sr. Capitão diz-me: ”olhe, até já fiz a inspecção ao avião, já vi que se o Sr. não voa, rebenta….” Agradeço efusivamente, e sentámo-nos no cockpit; Bomba, Shoke, magnetos, ignição… O hélice roda, mas devagar… Hummmm. Tento outra vez. Roda, mas não liga. O Sr. Capitão afirma: “pois, esteve parado muito tempo, vou buscar um spray dos carburadores…” O spray é aplicado, o motor liga, “tosse um bocado”, acelero, tiro o Shoke, o “trabalhar” melhora. Aqueço o motor. Faço-me a pista. Descolo!!

Dirijo-me para a Pateira. O voo é rápido, cerca de 12 minutos, mas é trabalhoso, sempre foi. Não tenho GPS. O “truque” é: Subo aos 1.500 pés e usando a bússola, aponto o avião para rumo 080, Sudeste, durante uns 5 minutos. Depois, com binóculos, “topo” onde está a Pateira… Começo a perder altitude lentamente. Quem localizar a Pateira no “Google maps”, verá que o formato é uma espécie de “S” não completo, e a aproximação para a amaragem deve ser feita de Este para Oeste, devido a topografia. E a parte mais comprida da lagoa origina no meio do tal “S”, da direita para a esquerda…. Ora, como estou a voar para Sudeste, tenho que fazer uma volta de quase 200 graus e é este “aspecto” que me dá “gozo”:

Motor a fundo!!”, inclino quase a 45º… Manche e pedal esquerdo a fundo. Mantenho o manche firme. Estou a 500 pés. Tiro motor. O avião passa por cima das árvores da margem. A lagoa terá aí uns 500 metros “utilizáveis”. Manche para a frente para poder amarar no mais curto espaço de tempo. Tiro todo o motor… Estabilizo a 20, 30 pés. Mas não me convém amarar ao ralenti, senão o avião ao amarar, parece uma bola de ping-pong… Motor ás 3.200 RPM, amaro a “voar”. Impecável!

Pés firmes nos pedais, para manter o rumo, desligo tudo. São 18.30 de uma tarde maravilhosa. O avião está parado. Tiramos os capacetes, os fones, puxamos dos cigarros, isqueiros, primeira “passa”… A sensação é maravilhosa. Encontramo-nos no meio de um lago, rodeado de árvores, silencio absoluto… A água é um espelho. O contraste de sensações, entre a aproximação e amaragem, que dão um “certo trabalho”, e depois a paz que se apodera de nós é de difícil descrição.

Depois, fala-se um bocado. De trabalho claro: “então, Beltrano já pagou?…E o Continente, quando é que vai buscar? Stocks de graúdo?” e por aí em diante. Aliás, estes tipos de conversas fazem parte de uma “estratégia minha”: Nas fábricas, a tensão é tão grande, que é difícil arranjar “disposição e tempo” para se falar de certos aspectos… Após um voo, e no meio da água, “os espíritos acalmam-se” e podem-se ter “conversas mais profundas”.

CAVOK.ptOk… Mais um ou dois cigarrinhos, noto que o Sol se está a pôr. Altura de nos irmos embora: Capacetes, fones, bomba de combustível, bomba de água (o avião mete sempre alguma água), magnetos, ignição… O Hélice roda lentamente… não liga!! Ligeira sensação de inquietação. Desligo tudo. Calma! Volto a ligar; O hélice roda ainda mais devagar. Ok!!!…. Desligo bomba de combustível, para poupar electricidade, dou a uma bomba de borracha…Magnetos, ignição… o hélice já não roda!!! A bateria está morta!!! E o Sol a pôr-se!!!

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Entretanto, levanta-se uma ligeiríssima briza, que nos está a empurrar lentamente para a margem esquerda, assim como uma bruma… O meu pendura afirma “Oh Dr. e agora carago?” Nem lhe respondo! Tiro o capacete e os fones.

Olho a minha volta. Puxo dos binóculos. Vejo uma pequena embarcação, tipo piroga, está a dirigir-se para nós, a remos. Digo ao pendura “Pá, reme com a mão do seu lado, que eu remo com a minha”… Aproximamo-nos. Vejo um garoto, aí de 18 anos, de pé, na piroga, só com um reme, a fitar-nos de boca aberta. Inicio: “Então, andas aos achigãs?” Não responde!!… Volto a perguntar, mais alto: “Então pá, estás a pesca?” Acena que sim. “Pá, preciso que me leves à margem, ficámos sem bateria…” Este responde: “pois, já vi”. Levanto-me do assento, retiro do compartimento do nariz do avião um cabo ligado a uma pequena ancora, e digo-lhe: “aproxima-te!!”. Este fica quieto… Começo a irritar-me porque o sol está praticamente no horizonte. “Então pá, preciso de ajuda porra!”. Vejo um sorriso “matreiro, malandro” a esboçar-se nas beiças do garoto. Compreendo. Tiro uma nota de 5 contos da carteira e aceno-a. Entretanto, o pendura resmunga: “filho de …

O garoto aproxima-se, de facto só tem um remo, que usa à popa da piroga. Dou-lhe a massa, este agarra no cabo e lá vamos nós para a margem esquerda. Mas muito devagar. Entretanto, o céu apresenta-se só com meio disco de sol, e aquela tonalidade avermelhada, que augura bom tempo para o dia seguinte.

Estamos a chegar a margem. Vejo um tractor a dirigir-se para nós. Desta vez é um velhote: “Então, ficaram sem bateria?” O casco do avião já roça a areia, salto do cockpit, molho-me claro: “Pois, tem aí uma bateria e cabos?” “Tenho sim senhor!” Rapidamente, ligamos os cabos a nossa bateria…Magnetos, ignição, o motor arranca imediatamente. Aleluia!!!!

Bem. Mas gera-se um problema. O hélice do Petrel é atrás, trata-se de um “push configuration”….

E mesmo ao ralenti, o avião tem tendência para ir para a frente, especialmente em água…Começa a enterrar-se na areia….O meu pendura não reage, está de olhos esbugalhados. Berro-lhe: “Oh Beltrano, saí do avião, temos que o virar…!” Este lá reage, molha-se também claro, e lá conseguimos virar o nariz para o lago. Saltamos para dentro do cockpit. Dirijo-me para a margem mais a sul da lagoa, no sentido de ter o maior espaço possível para a descolagem.

O Sol entretanto já se pôs. Existe apenas uma ligeira tonalidade avermelhada no céu. Olho para os meus instrumentos. Já não os consigo ver. E penso para mim.” Éh Pá, e agora como é que sei qual é a velocidade para descolar?”. O Petrel (e tanto outros) não tem iluminação nos instrumentos.

Mas não vou ficar na Pateira. Tenho uma ideia. Falo para o pendura: “Ouça lá, use o seu isqueiro para iluminar o indicador de velocidade, para que eu saiba quando atingirmos a velocidade de decolagem, 62 Km/ Hora”. Este retorque: “Oh Dr. mas a com a ventania, não consigo ter chama… Olhe, é melhor deixar-mos cá o avião, telefonamos e vem-nos cá buscar…”. Berro: “Nem pensar, já sei que não consegue ter chama, clique o isqueiro que o brilho é suficiente…

Ele tenta. Mas o manómetro está do lado esquerdo… e para isso ele tem que tirar o cinto de segurança. E argumenta: “Oh Dr. isto não é boa ideia, já nem se vêm as margens!!”. Berro-lhe, e aos palavrões, lá consigo que ele tire o cinto, se apoie sobre a minha perna direita, e comece a clicar…

Clique, clique, clique….Motor ao fundo…20 Kms, clique, clique, clique…40kms…Clique, clique, clique….55Kms… clique, clique, clique, 62Kms, 63Kms, puxo o manche. Descolámos!

CAVOK.ptSem capacete, o barulho é ensurdecedor….Está praticamente de noite. Vejo uma mancha de luz a minha frente, é Aveiro. E agora? O pendura continua a “clicar”. Estabilizo a potência, penso que estou a 1.000 pés, digo ao pendura “Pronto pá, já não precisas de clicar”… voo pelo “som do motor”, lembro-me das lições do Sr. Capitão Ferreira, fixo os olhos no que me parece ser as luzes da Avenida dos bacalhoeiros na Gafanha da Nazaré e aponto o nariz para lá. E penso: “Bem, na pior das hipóteses, aterro aí numa estrada qualquer que esteja iluminada. Mas também penso… e os cabos, os cabos…” De repente, vejo uma movimentação de luzes, parecem-me vir da Promaceira… Estou a aproximar-me e consigo então ver os detalhes: vários carros estão mesmo na Promaceira a apontar os faróis para a pista!

A aterragem foi “normal” perante tantas que lá fiz, com simulações de perda de potência, como tão exigidas pelo meu querido amigo Sr. Capitão Ferreira.

Ao aterrar, este lá pergunta: “Então, ficou sem bateria??

O pendura entretanto aliviadíssimo, mostra-me a bolha que tem no dedo, de tanto clicar.

Tudo acabou em bem, com um excelente jantar, muitíssimo bem “regado”!!!!

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Lições a aprender:

  • Ter sempre uma fonte de luz de emergência no avião.
  • Com anfíbio, é imprescindível um bom par de remos portáteis.
  • Voar sempre com a bateria carregada. Inclusivamente ter manómetros de voltagem e amperagem.
  • Cuidado com o pôr do sol…

Foi a última vez que voei “de noite”? Outras peripécias poderão demonstrar que não!!

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Mas a próxima história que vos irei contar, considero-a como a mais INCRÍVEL que jamais experimentei. Vi um “OVNI”? Não!!!… foi ainda mais aterrador….

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Pedro Gomes.  12 de dezembro de 2015. Fotografia por Pedro Gomes e Luís Malheiro.

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