Os últimos dias do Vulcão

Nos anos 70 andávamos a brincar na rua em Almada, quando de repente um grande “triângulo preto” passou por cima de nós, com um barulho ensurdecedor. Pensávamos que era uma nave espacial! 40 anos depois, mal sabia eu que iria estar envolvido no seu regresso aos céus…E que iria acompanhar os seus momentos finais.

Por Mike Silva

 

Deixem-me tentar explicar o que é o Vulcan, por palavras minhas: É basicamente um avião do tamanho de um parque de estacionamento, todo pintado de camuflado, com a envergadura de dois camiões da TIR e quatro motores iguais aos do Concorde. Que ao passar a baixa altitude por cima das centenas de pessoas que se deslocam de todos os pontos do Reino Unido para o ver voar, troveja como se o Mundo fosse acabar! A Atmosfera luta para que os seus átomos não se desintegrem à passagem destes milhares de cavalos cuspidos violentamente pelos escapes deste vulcão… Na minha modesta opinião, e agora que não temos o Space Shuttle e o Concorde, o Vulcan tem sido o avião mais espetacular de observar em vôo, em todo o Mundo.

Mike Silva VulcanA primeira vez que vi o Vulcan foi em Almada. Devia ter seis ou sete anos. Possivelmente, teria levantado vôo da base aérea do Montijo, e passou por cima da minha casa. Pensei que fôsse o Enterprise do Star Trek! Mas afinal qual foi a história do Vulcan?

O Vulcan começou a ser idealizado em 1946, como um aparelho inglês de dissuasão nuclear, numa altura em que os EUA começaram a proibir a exportação de tecnologia nuclear, mesmo para países que tinham colaborado no “Projecto Manhattan”( Um projecto dos EUA , Canadá e Reino Unido para criar as primeiras bombas atómicas) . Os americanos tentaram colmatar esta proibição, “fazendo o favor” de sobrevoar a Europa 24 horas por dia com B-52s carregados com bombas nucleares, para o que desse e viesse. Ora isto não servia ao Reino Unido. Após alguns aparelhos de teste como o Avro 698 e o Avro 710, o Vulcan voaria pela primeira vez em 1952, participando em exercícios de vigilância partilhada com os EUA sobre a Europa, e visitando todos os cantos do globo a partir de 1956. O mais próximo que os Vulcan estiveram de serem utilizados em conflito nuclear, foi na crise dos mísseis cubanos em 1962, onde as esquadras estiveram em Alerta 3. Nos anos 70, com a entrada dos submarinos Polaris em acção, o Reino Unido dispunha agora de uma arma dissuasora mais eficaz, e as bombas Blue Steel e Yellow Sun do Vulcan foram retiradas de serviço. Os seus dias estavam contados. Em 1982, a maioria dos aparelhos encontrava-se já em exposição em museus, quando de repente a Argentina invade as ilhas Falklands. O Reino Unido precisava de um bombardeiro rápido que conseguisse mandar uma  “mensagem” inequívoca sobre a soberania do território. O único bombardeiro capaz de desempenhar essa missão seria o já obsoleto Vulcan, que por motivos políticos teve de efectuar vôos de 6500 Km desde as ilhas Ascension no meio do Atlântico até Port Stanley. Um feito que exigiu 11 aviões tanque “Victor”, e que à data foi considerado o maior raid aéreo da História. Os danos no aeródromo de Port Stanley foram reduzidos, mas o efeito psicológico foi decisivo para assegurar a soberania inglesa sobre aquelas ilhas no hemisfério Sul.

Mike Silva VulcanQuanto a mim, só voltaria a ver o Vulcan 30 anos depois. Quando numa revista qualquer, fizeram uma reportagem sobre o restauro de um Vulcan que estava a decorrer em Bruntingthorpe, um aeródromo inglês outrora ao serviço dos bombardeiros da USAF, hoje transformado em museu, com a maior pista civil do Reino Unido, com quase 3 Km de comprimento. Fiquei entusiasmado por saber que estavam a colocar um daqueles “triângulos pretos” a voar novamente. À minha memória vieram-me as imagens da minha infância. Tinha de ir ver este avião de perto o mais rapidamente possível. Quando cheguei a Bruntingthorpe, a azáfama era bastante. Dento de um enorme hangar logo à entrada, por detrás de uns portões fechados, nem queria acreditar! Lá estava o imponente Vulcan da minha infância! Não tardou muito para que o meu background aeronáutico da Força Aérea Portuguesa e o meu entusiasmo, interessassem aos responsáveis do projecto, que me convidaram a “aparecer e ajudar” se eu quisesse.

Nos fins de semana a seguir, apareci no aeródromo e colaborei conforme necessário.  Entrei no cockpit do Vulcan pela primeira vez. A quantidade de cabos elétricos e geradores a trabalhar, e um constante movimento de empilhadores e pessoal, mostravam que as coisas estavam a tomar forma. A 18 de Outubro de 2007, o Vulcan foi finalmente rebocado para fora do hangar, e os seus motores postos a trabalhar pela primeira vez no séc. XXI. O Vulcan voltava a taxiar pelos seus próprios meios!  Em plena apoteose, cerca de algumas centenas de entusiastas reuniram-se ao longo da pista principal. Após uma pequena corrida, a gigantesca asa delta de 113 toneladas libertou-se do solo após 15 anos de espera! Não havia um só par de olhos enxutos em todo aquele aeródromo. Possivelmente o meu mais emotivo e importante momento como entusiasta da Aviação. Durante os anos seguintes, desloquei-me de propósito um sem número de vezes para o ver a voar, juntamente com milhares de outras pessoas. Chegava a fazer 500 Km para o ir ver a voar do cimo da falésia de Bornemouth, onde ele voava sobre a praia ao nível dos olhos!

Mike Silva VulcanEntretanto passaram oito anos. O dinheiro necessário para manter o aparelho a voar escasseia de mês para mês. As equipas de manutenção estão reformadas e não se pode investir em pessoal para reparar e manter um só avião. O material escasseia.  Estava na altura de reformar o Vulcan. Ficou decidido que 2015 seria a última época do aparelho. Na semana passada, como que um “Adeus”, o Vulcan passou novamente sobre o hangar de Bruntingthorpe que o viu renascer.  As milhares de pessoas que alí se deslocaram, sabiam que possivelmente iria ser a última vez que iriam ver o Vulcan a voar. Mas desta vez toda a gente sorria, agradecidos por ter havido um grupo de homens e mulheres que com a sua determinação e vontade permitiram que este espetacular avião continuasse, para além de todas as expectativas, a voar por mais oito anos de modo que os nossos filhos o pudessem ver.  E ver um puto de oito anos a apontar para um Vulcan em vôo, garanto-vos, é um espetáculo dentro de outro espetáculo. A magia do Vulcan será sempre esta: Libertar o puto de oito anos que sempre esteve preso dentro de nós. Obrigado Vulcan…o meu “triângulo preto”…

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(Fotos do Autor)