Um caso de identidade

Estamos em 1990. Estou no meu escritório na Torre 3 das Amoreiras, em Lisboa. A minha secretária entra pelo meu gabinete, esbaforida: “Sr. Dr., estão ali uns senhores na recepção, de uniforme, um até me parece que é da GNR, outro é da Marinha de Guerra, o terceiro é da Autoridade Portuária, e o quarto Senhor nem percebi, mencionou “Ana” , e exigem falar-lhe imediatamente!”

Como estou a descarregar um navio de bacalhau no Barreiro, o primeiro pensamento que me ocorre é: “Estou lixado, toparam-me a palete de Cognac que mandei meter a bordo no Havre….”

Mas 4 indivíduos…Fardados? Hum…Digo a Secretária para os fazer entrar na sala de conferências.

Ajeito o nó da gravata, visto o casaco, e vou ter com eles. Terão passados 5 minutos.

Estão de pé. Com dossiers na mão. Três em uniforme, outro à civil. O Agente da GNR aproxima-se, introduz-se: “Tenente beltrano, da GNR”….Um outro:” Capitão de Mar e Guerra sicrano”…O terceiro “Responsável pela zona portuária da grande Lisboa”….E finalmente o quarto, o civil: “ Responsável da ANA- Aeroportos de Portugal”.

Olham-me fixamente, de semblantes (muito) sérios. Convido-os a sentarem-se, ofereço café. Recusam o café, mas sentam-se. Começo a sentir-me incomodado, e até intimidado. Faço um esforço, “a melhor defesa é o ataque”, e pergunto-lhes:” Como é que lhes posso ser útil, e o que é que vos traz aqui?”

O Agente da GNR interpõe: “Por uma questão de identificação, o Sr. é João Pedro etc….?” Respondo afirmativamente. “E o Sr. é o dono de uma aeronave anfíbia, ultraligeiro, registo CS-UBQ? Fico atónito, mas respondo que sim.

Comenta o Capitão-de-mar-e-guerra: “E o Sr. ainda pergunta o que é que nos traz aqui?? Deveria ser-lhe óbvio a razão desta Nossa Visita!!” O Responsável da Autoridade Portuária também interpõe:” Os Srs. pensam que por terem estes escritórios, com estas faustosas salas, estão acima dos comuns dos mortais? Que a Lei N/ é para todos??” E o da ANA”: Eu não consigo compreender como é que os Srs. não percebem que são todos apanhados, mais cedo ou mais tarde! Ou pensa que vivemos num país do terceiro mundo?”

Reponde o da ANA: “O que é que o Sr. fez? Ainda pergunta! É preciso lata! Eu avivo-lhe a memória: O Sr. foi detectado pelo radar do aeroporto de Lisboa às tais horas de tal dia, voando numa zona completamente interdita! O Sr. foi RESPONSÁVEL pelo desvio de vários aviões comerciais, e pelos consecutivos atrasos nas Chegadas desses aviões, para além do combustível usado!! E ainda teve o desplante de passar por cima das pistas da Portela! O Sr. é Responsável pela disrupção total do espaço aéreo nacional! Quem pensa o Sr. que é? Tenho aqui o Dossier completo, com as voltinhas que o Sr. fez, e ainda fotografias do avião, que tirámos às dezenas. Para N/ mencionar as centenas de testemunhas oculares!

Estou sem “reacção”.

E o Capitão de Mar e Guerra interfere: “ Bem, e o Sr., N/ obstante o que fez, ainda ruma ao Alfeite e passa repetidamente por cima das fragatas, abanando as asas! Provocando a Marinha! De Guerra! Teve sorte de N/ lhe apontarmos as antiaéreas! O que o Sr. merecia era levar um tiro nos CORNOS!”.

Estão-me a cair “os dentes todos”. Tento responder, mas é agora a vez do Responsável da Autoridade Portuária intervir (outra vez): “mas o Sr. N/ ficou por aí! Do Alfeite, dá-lhe na cabecinha fazer voo rasante ao lado de um paquete, assustou os passageiros. O Comandante do navio já fez queixa formal ao Porto de Lisboa! Por causa do Sr. estamos metidos numa alhada terrível! O que o Sr. merece é cadeia, e que se deitem fora as chaves!  E ainda passa por baixo da ponte! E depois desaparece. Também, era só o que lhe faltava, para uma tarde divertida, N/ é?

A situação é 100% surrealista. Estou a tentar “absorver”. Muito lentamente.

O da ANA: “Vá, N/ faça essa carinha de inocente! Até parece que o Sr. não sabe nada disto!”

Finalmente calam-se. Fitam-me. E de repente sai-me, bem de dentro, e muito sentido: “PORRA, se fiz isso tudo, até devia ser executado!” Segue-se um silencio…Que me dá força. E ataco: ”Se fiz essas barbaridades todas, porque é que estão a aqui a falar comigo? Nos Estados Unidos, de onde venho, punham-me umas algemas, e ia para a cadeia!”

Interpõem o Oficial da GNR: “Pois Sr. Dr., mas N/ estamos nos Estados Unidos, e o Sr. N/ está FORMALMENTE acusado….”Noto que o tom “baixou”. Ataco mais: “ Sr. Agente, EU NEGO TER FEITO QUALQUER DAS BARBARIDADES que me ACUSAM! E mais, vou-lhe provar que N/ fui eu. E sabe porquê? Porque na data que me transmitiram eu N/ estava em Portugal! Mas mesmo que estivesse, eu N/ faria tais coisas! Já fiz algumas, mas NUNCA desse calibre! Alem disso, o meu avião está em Aveiro, e NUNCA voei até Lisboa. O mais distante que estive foi em Sta. Cruz!”

Interpõe o “ANA”: “N/ venha com conversas, temos fotografias do seu avião!”. Eu berro: “Então mostre-as”. Ele assim faz: São dezenas, a preto e branco e a cores, tiradas de “baixo para cima”.

Noto imediatamente que o avião fotografado é branco como o meu, e é SEM DÚVIDA um Pétrel. Como o meu. MAS, N/ tem matrículas nas asas inferiores…Nalgumas fotografias consegue-se ver a cabeça do piloto, mas é impossível reconhecer a face. E está sem capacete, e eu sempre voei com capacete. E de uma coisa eu tenho a CERTEZA. Eu N/ fiz NADA do que me descreveram. E aquele N/ É o meu avião…Falta-lhe o leme (náutico) na cauda.

A “coisa” continua, argumentação “ao cubo” de todas as partes, nem vale a pena descrever.

E de repente, surge-me uma ideia, uma possibilidade, enfim uma HIPÓTESE que pode explicar o que aconteceu….

 RECUEMOS cerca de 8 meses.

Estou no meu escritório na Gafanha da Nazaré, numa das N/ fábricas. Recebo uma chamada. Avisam-me que é de França. Atendo. Uma voz fraca, algo tímida, responde: “É o Pedro?”. Retorqui: “Bem Pedros há muitos…” Resposta: “Ah desculpe, N/ tenho o seu ultimo nome, mas é o Pedro do bacalhau que tem uma anfíbio, marca Pétrel?” Digo que sim. “Ah pois, foi o meu irmão que me falou de si, ele jantou consigo uma noite, e depois falou comigo…” Pergunto-lhe o nome do irmão…Reconheço imediatamente. Trata-se de uma das famílias MAIS PODEROSAS de Portugal, e então nos anos 80 e 90 e por aí em diante. É obvio que N/ vou mencionar quem era. Mas estou convicto que 90% dos Portugueses conhecem esta família.

“Então como te posso ser útil?” Ahhh, Já falei com a fábrica aqui em França que produz o Pétrel, eles estão a pensar vender os Direitos para uma empresa no Brasil, vendiam-me o protótipo… Sabes, aquele que tu experimentaste…. Gostava que me dissesses o que pensas do avião, etc. etc..”

Respondo positivamente, com entusiasmo, com paixão, sobre o avião. E convido-o a vir dar “umas voltinhas” comigo. Este responde: “Obrigado, mas para já N/ posso, estou em França a tratar de um assunto sério. Mas quando voltar….” OK, respondo eu. Mas quando vou para desligar, este ainda me diz: “Pedro, N/ sei quanto tempo vou ficar em França, mas importas-te de falar comigo de vez em quando?” Afirmo que “Claro que sim” mas acho estranho.

Passados uns dias, mais um telefonema do Sr…Desta vez, quer saber como é que decolo de terra, como é que se faz, são os pedais importantes no Pétrel, etc….A voz continua “fraca”, por vezes tenho dificuldade em ouvi-lo. Penso para mim: “Este individuo deve ter problemas na vida dele, parece-me deprimido….”

Mais uns dias, mais um telefonema. Explica-me que aprendeu a voar “sozinho” num quicksilver, mas teve um pequeno “incidente” foram só “umas costelas”, mas depois já voa outra vez, etc…Entretanto quer saber como é que se amara no Pétrel, quais os “RPM’S”, atitude de descida, momento da rotação do avião….Descrevo em detalhe, e com entusiasmo. Escuta-me com toda a atenção, por vezes interrompe para esclarecer um ou outro detalhe. Pergunto-lhe quando é que volta a Portugal, diz que N/ sabe, “depende”.

E assim continuamos, durante vários meses. Recebo telefonemas, uma ou duas vezes por semana. Por vezes estou na Noruega, outras vezes em Aveiro, outras em Lisboa.

Numa das N/ derradeiras conversas, gracejo, afirmando-lhe: “já tens o curso teórico de voo de Pétrel, pá, agora só precisas é de voar!” Resposta: “olha, já comprei o avião, agora só preciso é de me meter nele e voar!” Fico aterrado. “N/ faças isso pá, corres um sério risco de vida. Uma coisa são as N/ conversas. Quanto a meteres-te no avião e a aventurar-te sozinho, desgraças-te! Vem ter comigo, porra, eu dou-te umas lições. Este diz que N/ pode. Continuo a pedir-lhe que N/ o faça. Pela primeira vez, fico N/ só preocupado mas também chateado, sinto que fui usado. Por um irresponsável, menino “copo de leite”, imbecil!

Continua a telefonar-me. Já N/ lhe falo mais do avião, só lhe “rogo” é que N/ voe sozinho. Convido-o repetidamente a voar comigo. Recusa. Diz que “N/ pode”.

Deixo de responder aos telefonemas dele. N/ quero fazer parte de uma situação que se pode tornar numa tragédia…

Passam-se umas semanas. Recebo um telefonema. Do irmão. Este comenta: “Pedro, peço o encarecido favor de falar com o meu irmão. Ele é “louco” mas N/ te explicou porquê. Por favor fala com ele. Ele precisa!” Com dificuldade, anuo.

5 minutos depois telefona ele. A voz continua cansada, arrastada. “Oh Pedro desculpa lá, sei bem que te preocupei, que estás chateado comigo…” Interrompo:” Porra pá, que direito é que tens de me chatear, de pores em risco a tua própria vida, quando tantas vezes me ofereci para te dar umas lições?? E continuas em França, sempre em França! Que eu saiba, N/ precisas de estar emigrado em França! Porque é que N/ vens a Portugal, nem que seja por um fim de semana, ponho-te a voar! Mas afinal, o que estás a fazer em França??

Resposta, que ainda hoje me lembro como “se fosse hoje”: Pedro, já notaste (e até comentaste) que a minha voz está fraca, arrasto-a, que pareço cansado…Sabes, o falar contigo tem constituído para mim ao longo destes meses, o ponto alto de cada dia. É que normalmente, quando falamos eu estou numa cama de hospital, a ser injectado com quimioterapia…Sofro de uma forma rara de leucemia. N/ existe tratamento consagrado. Por isso estou em França. Em tratamento experimental. A ver se me safo… Falar contigo, escutar-te, com tanta paixão, alivia o meu sofrimento. Desculpa a lamechice. Mas é a verdade. E portanto, O QUE É QUE EU TENHO A PERDER?”

Fiquei “sem fala”. Depois comovi-me. Depois falámos os dois como se fossemos dois irmãos, no Grande Universo” da FRATERNIDADE entre os HOMENS.

Ao longo do tempo, continuámos a falar. Do quê já N/ interessa. Lembro-me de num belo dia receber um dos últimos telefonemas dele: “Pedro, voei hoje pela primeira vez! E amarei. Estou em Portugal, o cancro para já N/ se desenvolveu mais! Temos que nos encontrar!

Cerca de 8 meses depois, voltamos ao princípio desta (dramática) história. Genuína, e sem embelezamentos. Ou exageros.

Resolveu-se o caso. Evidentemente. Tinha sido ele.

Ao longo destes meses, nunca me ocorreu pedir-lhe o número de telefone. Mas falei com o irmão. Que falou com ele. Que admitiu tudo o que tinha sido descrito pelas autoridades que me “visitaram” na minha sede.

Recebi depois uma caixa de “moet”. Estive para a devolver, mas acabei por a beber, lembrando-me que afinal, somos todos humanos.

Meses depois, recebo um telefonema de um amigo meu: “Pá, estás doido ou quê? Vi-te agora na televisão, no rally do Alentejo, estavas a voar por cima dos carros! Qualquer dia vais para a cadeia!”

Foi bom esse telefonema.

Nunca o conheci pessoalmente. N/ sei se está morto ou vivo. Poderia facilmente (e neste momento) sabe-lo. Mas prefiro N/ o fazer.

Pedro Cameira Gomes

Mafra, 3 de Março, 2016.