Ida a Braga

A título didático lembrei-me de compartilhar uma experiência que me sucedeu naquele que poderia ter sido o meu último dia de vida.

Era uma bela tarde de verão talvez na década 90 ou fim da de 80.
Andava sozinho em voltas de pista no Aeródromo de Braga com um já então velhinho Auster que creio ainda hoje ser “vivo”, quando numa delas me apercebi que voava sobre a pista, a cerca de 1 metro de altura e já tinha lambido uns dois terços da dita cuja sem que o avião manifestasse qualquer entusiasmo em subir, como era seu hábito e lhe competia.

Via as árvores em frente aproximarem-se rapidamente e comecei a ficar preocupado. Já não havia dúvida, algo estava errado.
Puxava suavemente o manche mas nada sucedia. Apesar de só estar a alombar comigo duma lotação de 3 pax, o bicho não acelerava mais e já não tinha mais motor, já ia nos copos…

Que fazer? Já só tinha nem 200 metros de pista e instintivamente sabia que, com aquele espaço e velocidade não conseguiria uma aterragem numa peça única, tal como é tradição e me convinha.  É que havia árvores, não campos, após a pista…

A cada segundo via as árvores mais próximas, enquanto o cérebro febrilmente procurava uma explicação e solução.
Felizmente não só não entrei em pânico como pelo contrário, entrei num estado de grande agudeza e lucidez cerebral. Isto costuma-me suceder em momentos de perigo ou grande intensidade emocional. (Como daquela vez em que me parou o motor a 300 pés e por baixo só havia muros e casas, nem um campinho decente com ou sem vacas. Bom, essa história fica pra outra vez, talvez….)

De repente o tempo abrandou e aqueles 3 ou 4 segundos pareceram-me, e ainda hoje me parecem, 3 ou 4 minutos enquanto fria e calmamente re-inspecionava os instrumentos e o comportamento do voo, e analisava tudo à luz dos meus conhecimentos teóricos em busca de uma explicação. Sei que nos filmes de Hollywood é costume berrar muito e gritar “agarra-te” ou “cuidado” mas eu nem piei. A minha atitude mental, que ainda hoje me admira, era de fria curiosidade técnica.

O fim da pista aproximava-se impiedosamente mas eu rapidamente percebi a causa e portanto tinha a solução. Por ser contra-intuitivo, custou um pouco fazer o oposto do que estava a fazer, mas eu sabia que iria resolver o problema. E se nao resolvesse, não teria que me preocupar mais… nem com isso nem com mais nada.

Certamente já perceberam o que se passava: o avião estava cabrado.  Nada especial, tão simples como isso!
Relembro que o Auster tem trem clássico, duas rodas à frente e uma atrás , portanto a sua atitude em terra é cabrada, de nariz levantado.  Fica bonito nas fotos mas é difícil manobrar no chão. Não havia modernices como camaras, tinhamos que “taxiar” aos SS’s para vermos o caminho e o avião em terra gosta mais de obedecer ao vento que ao piloto.

Quando antes tinha tocado em 3 pontos no início da pista ,com o nariz bem levantado, quase na perda, como mandam as regras,  eu tinha levado o motor ao máximo mas sem dar a mão, portanto o avião acelerou o que pode mantendo aquela atitude cabrada de grande resistência ao ar.  Não subia porque estava quase na perda com o motor nos copos, não descia porque o efeito solo lá lhe dava algum apoio mesmo sendo de asa alta, e porque eu instintivamente não  puxava mais por sentir a perda próxima.

A solução por mais contra-intuitiva que parecesse, era descer em vez de subir, ceder o manche em vez de puxar.
Mal o fiz, quase toquei de novo no chão, e logo senti a aceleração e a responsividade dos comandos, em vez daquela moleza da pré-perda. Ainda tinha que passar aquelas árvores, mas elas já estavam habituadas a rapadelas e não se importaram de perder algumas folhas…

Relembremos que com trem clássico no início da corrida de descolagem temos que levar o manche um pouco á frente para levantar a cauda e sair da atitude cabrada.
(Eu disse “um pouco”, não disse “energeticamente” como daquela vez que um energético amigo abusou energéticamente desse pouco e fez uns belos bigodes no hélice ao tocar com ele no chão. Voo abortado e já que era eu o comandante e era preciso relatorio oficial para o seguro, fiquei com a rara, bizarra e dúbia honra de ter na minha caderneta registado um voo com zero aterragens. Outra história para outra vez, talvez.)

Morais desta historia verídica (aprendam que eu não duro sempre e aprender com os erros dos outros é mais saudável que com os nossos):
– avião cabrado não sobe! 
– teoria é aliada e tão importante como a prática!
– pânico e aviões não combinam!

Bons voos.

Luis S Souza. Janeiro 2020. Fotografia meramente ilustrativa por Milkovi, Avel Chuklanov, Shaun Darwood, Metin Ozer.

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