Aconteceu num Fim de Semana

É domingo e quando subi os estores ao acordar, confirmei o que já suspeitava: o dia estava lindo. Talvez por aqui ter nascido, para mim a luz de Lisboa é única e não comparável com a de nenhum outro lugar que conheço.

A vontade de ir até Benavente aumenta ainda mais nestes dias. O “CS-U…” esteve a descansar durante toda a semana e quero acreditar que espera ansiosamente pela minha visita.

Com o aproximar do fim-de-semana vou sempre acompanhando as previsões meteorológicas para tentar adaptar os outros afazeres pessoais com a habitual escapadinha ao campo de voo. Neste fim-de-semana, pareceu-me que domingo à tarde seria o período mais favorável para a tal incursão.

Na verdade, ir para o ar, conseguirmos por instantes que sejam contrariar a força da gravidade que nos prende à terra, é algo que para alguns de nós não é só um sentimento de prazer; quase que me apetece dizer que se transforma num pequeno vício. Não doentio claro mas, contrariamente aos vícios mais comuns desta vida, libertador, purificador das ideias, higienizador mental e revitalizador para as dificuldades que teremos que resolver durante a semana.

Beaneventenm

Normalmente desloco-me sozinho até ao campo de voo, mas embora houvesse previsão de alguma nebulosidade para a tarde, propus à minha mulher:

– Então e se fossemos depois do almoço até Benavente?

– Está bem. A Mafalda pode acabar lá os TPC, levamos a bicicleta e anda por ali um bocado.

A Mafalda é a minha filha mais nova que tem oito anos e gosta muito de andar de avião. Desde que fiz uma passagem alta com ela a bordo pede-me sempre para aterrar sem pôr as rodas no chão!

O Gustavo, o rapazola da família que em tempos dizia querer ser piloto, é o meu filho do meio; tem dezasseis anos e como não tinha testes durante a semana também foi connosco. Apenas ficou em Lisboa a minha filha mais velha que tinha combinado uma visita à Gulbenkian. Por isso, desta vez não nos acompanhou.

Quando chegámos ao aeródromo encontrei algumas caras conhecidas por entre muitas outras que não conhecia. Aparentemente, havia por ali algum evento particular com alguns batismos de voo a decorrer em paralelo.

O CS-U… ainda estava fora do hangar. O meu sócio esteve a voar antes de eu chegar mas já não se encontrava por ali. Alheio a tudo o resto, pedi ao Sr. Vicente para levar o avião para a placa de aquecimento e aí efetuei os procedimentos normais: inspeção de motor, gasolina, volta de 360º, verificação das partes mais sensíveis, etc.

– Gustavo. Queres vir comigo? Vamos ver como está o tempo lá em cima!

bem! – respondeu-me.

Entretanto, dois “Dynamics” perfilavam-se para descolar. Aquecimento de motores, check de magnetos e rolagem ao ponto de espera da “uno zero”. Fiz os mesmos procedimentos de aquecimento quase em simultâneo e deixei-me ficar para número três para descolar. Um após outro lá fomos para o ar tendo os outros dois aviões abandonado o circuito. Eu, verificando que a visibilidade era duvidosa optei por ficar a fazer alguns “tocares e andar”, não me afastando do campo. Na verdade, havia uma espécie de neblina diferente, mais carregada e escura como se pudesse trazer chuva com ela. Mas, aparentemente, estava longe.

Dentro do avião estava espetacular. Vento fraco, temperatura amena, sem qualquer oscilação por parte do aparelho. Exatamente como gosto quando levo outras pessoas comigo. Depois de alguns circuitos, eis que chegam os “Dynamics” que após algumas passagens sobre a pista acabam por aterrar. Aterrou um, depois aterrei eu e finalmente o outro avião.

A ideia era fazer um “stop and go” para troca de passageiro.

– Vou perguntar à Mafalda se também quer vir passear – disse ao Gustavo.

– Mafalda, queres dar uma voltinha com o pai?

– Siiiiiim!!! – disse a Mafalda.

– Então vamos lá!

Sentar, apertar o cinto (dentro do possível, pois são ligeiramente grandes demais para ela), acertar os auscultadores e estamos prontos.

Entretanto, o Hélio, piloto experimentado que tinha estado a preparar o seu avião azul com roda de cauda, informa que vai rolar para o ponto de espera da “uno zero”, após o que alinha e descola de imediato. Eu saio atrás, dando espaço após a sua descolagem e lá vou também para o ar.

O Hélio contacta:

– António, confirmas que vais fazer circuitos esquerdos?

– Sim, vou fazer circuitos esquerdos para a “uno zero”.

– OK! Então vou manter-me do lado direito da pista para trabalhar a cerca de 1500 pés.

Ao que respondo:

– Copiado! Mas, caso prefiras, posso passar a fazer os circuitos pela direita. Para mim dá igual…

– … “Silêncio”

Passam alguns instantes e subitamente ouço novamente o Hélio:

– António. Estás a sentir a turbulência? Isto vem lá borrasca da grossa…

– Não. Onde estás? Aqui está tudo calmo.

CAVOK.pt

Ainda não tinha tirado o dedo do PTT e levo com uma descendente que me atirou mais de 50 pés para baixo. Embora com altitude suficiente (normalmente defendo-me sempre), tinha acabado de passar por uns cabos de alta tensão nessa altura (malditos cabos). O boné, os óculos e sei lá que mais que estava sobre o capô ficaram literalmente no ar e acabaram por cair no chão do avião. De seguida uma ascendente e lá vou por ali acima nem sei quantos pés. Felizmente que tinha tido o cuidado de apertar os cintos.

– Pai, isto hoje está um bocadinho diferente – comentou a Mafalda como se nada de especial estivesse a acontecer, tentando tirar o cinto para apanhar os objetos do chão.

– Não tires o cinto – disse, levantando-lhe a voz – Apanhamos tudo quando chegarmos lá abaixo.

Obedeceu.

Isto tudo passa-se em poucos segundos após o que transmito:

– Hélio, agora já percebo o que dizias. Isto está a ficar mesmo mau.

– Pois é. Vou para baixo e creio que, de momento, a pista melhor é a “uno cinco”.

– OK. Mas como já estou na final da “uno zero” vou tentar aterrar – disse-lhe.

Com dificuldade e com a instabilidade a manter-se, consigo alinhar o avião, mas embora a velocidade indicada não seja exagerada o avião voa muito depressa. Olho para a manga. Indica que estou com vento de cauda. Por muita vontade que tivesse de ficar em terra fui obrigado a voltar para o ar.

Volto pela esquerda para me juntar ao circuito da “uno cinco”, subindo o mais possível para livrar os cabos de alta tensão (malditos cabos).

Já na final, tenho à vista o tráfego à minha frente a fazer uma aproximação dentro da normalidade possível. Mas fica. Aterra em segurança.

Penso poder fazer o mesmo. Mas o meu avião é muito mais leve e tem umas asas que nunca mais acabam. Passo os cabos da cabeceira da pista, alto por opção. Não quero arriscar descendentes que me atirassem para cima deles (malditos cabos). Tento tirar toda a velocidade possível, mas sem exageros. O velocímetro tão depressa indica 80 Km/h como 120 Km/h. Faço uma “glissagem daquelas” para forçar uma descida mais pronunciada. Enfrento algumas descendentes na final curta e tenho que nivelar. Apanho uma descendente mais acentuada ainda antes da cabeceira, toco na pista, mas com alguma velocidade e ao mesmo tempo que sou violentamente empurrado para a esquerda. Olho para a frente e vejo uma árvore que nem sabia que existia ali. Motor a fundo, manche atrás e lá vou de novo para o ar.

Alguém sugere pelo rádio:

– O melhor é ires para Santarém.

Estou a 700 pés. Olho para norte… ainda está pior. Escuro que até assusta!

Para mais ajuda começa a chover. A manga parecia maluca. Não parava quieta e tanto apontava para um lado como para outro. Para cima e para baixo… Não parava.

Os nossos companheiros em terra, assistindo a tudo o que se estava a passar no ar, pegam no rádio para dar algumas indicações. Penso que era o Hélio:

– … Cuidado, não exageres nas voltas. Tem atenção à velocidade…

Tudo aquilo que sabemos de cor, mas que não é de mais nestas alturas relembrar para ajudar a não perder a concentração.

– O vento agora vem da tua direita…

Ajudas preciosas para quando há muita coisa a fazer ao mesmo tempo e respostas rápidas a executar.

Resolvo esperar alguns momentos. Tento novas aterragens, com safanão da esquerda, safanão da direita, para cima e para baixo, borregando mais duas vezes antes de conseguir aterrar em segurança na “uno cinco”, depois de uma glissagem controlada para chegar ao início da pista com a velocidade mais adequada possível. Após o toque, o avião quase que pára sozinho poucos metros à frente devido ao forte vento que se fazia sentir. Percorri cerca de 100 metros e saí na primeira à direita, sem problemas, para a placa de estacionamento. Parqueio frente ao hangar e finalmente respiro mais aliviado. Olho para o lado, para o principal motivo de preocupação durante esta odisseia: a minha filha mais nova.

Inconscientemente, após a abertura da porta, a Mafalda sai feliz do avião dirigindo-se para o irmão e para a mãe. Sem sinais de medo. Afinal tinha estado com o pai a dar uma voltinha de avião como lhe tinha prometido.

Saí do avião. Olho para o céu e vejo nuvens que não estavam ali anteriormente.“Cumulonimbus” que se formaram num tempo recorde. Começa a trovejar.

Em jeito de conclusão:

– Ainda bem que voo sempre com os depósitos de gasolina bem atestados. Quando se diz que não vale a pena encher muito os depósitos porque vamos só dar umas voltas de pista, não estamos a ponderar a totalidade das variáveis que podem surgir inesperadamente.

– Ainda bem que tenho cuidado com a correta utilização dos cintos de segurança. Estão lá para nos defender quando necessário.

– Asneira: utilização inadequada da frente do cockpit. Vou retirar de imediato toda a tralha que incorretamente viaja nesse local e ter mais cuidado para mesmo provisoriamente não pousar aí objetos estranhos.

Uma última palavra para a solidariedade daqueles que estando em terra, mas preocupados com o que está a acontecer, tentam sempre dar uma ajuda dentro das limitações existentes nestes casos.

Quem não achou graça nenhuma foi a minha mulher que assistiu a tudo isto com os nervos em franja. Ando há mais de 10 anos a tentar mentalizá-la que esta atividade praticada conscientemente e com os cuidados devidos não tem perigo algum mas, depois disto, não sei mesmo quando é que vou conseguir levar outra vez os miúdos a entrar no avião.

Nota: A descrição acima foi feita na primeira pessoa, tentando descrever com o maior realismo possível as ocorrências dessa tarde.

António Mateus. Publicado em Março de 2016. Republicado Março 2019. Fotos Luís Malheiro e Unsplash

(Os nomes mencionados são fictícios, de modo a preservar a identidade dos vários intervenientes.)