Do ensinar… a voar… anos que voaram.

Um amarelo com sabor a caramelo pinta o céu escuro de azul celeste puro… Impossível resistir a uma dentada num dia com uma luz que se espreguiça assim!“… Escrevi eu um dia, a caminho do trabalho, mergulhado na beleza única apenas ao alcance de alguns alvoreceres…

Até que me apanhei sentado ao lado de um aluno, no cockpit de um avião, para um voo de instrução!!!

Lá irei…

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Recuemos entretanto a 2009, ano em que entrei no mundo da Formação Profissional… Por estrito acaso… Até então, conhecia somente a Formação Profissional através dos relatos de alguns amigos que a frequentaram.

Muitas histórias deliciosas sobre assuntos tão sérios que até tinham sempre espaço para uma gargalhada: deveria ser sempre assim com as coisas sérias…

Foi então que, de repente, alguém que nunca tinha equacionado, de forma alguma, algum dia ser professor, estava a preparar-se para ir dar aulas… Eu mesmo… Para o efeito, tive que obter o meu Certificado de Aptidão Pedagógica (CAP).

Durante o curso que frequentei nesse sentido, aprendi muitas coisas, muitas mais as interessantes do que as úteis.

E a pouca utilidade de muitas das coisas que ouvi no curso em si deve-se, em muito, ao facto de a educação, no seu sentido mais abrangente, ter o seu objecto de estudo nos espaços onde se transmite saber.

Isto é…

Sem colocar em causa o trabalho e o mérito de muitos e excepcionais pedagogos, certo é que o trabalho (que se queria e desejava) de campo feito atrás de uma secretária em cima da qual se empilham livros escritos atrás de secretárias semelhantes, corre o grave risco de ser pouco exacto… Nada preciso… Ao ponto de nem sequer conseguir ser sério… Tal como disse Jacob Bronowski, “we have to touch people.

Dessa forma, um educador tem que perder-se numa multidão de educandos… Sempre com uma noção de onde está o Norte… Mas tentando e errando… Sempre… Muito… Só assim passará a saber encontrar-se… A saber orientar-se… A saber orientar…

Como me disseram há relativamente pouco tempo, “aprende-se muito a ensinar”.

Tão verdade…

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Nestes anos todos a (tentar) ensinar, aprendi e continuo a aprender muito… Do ponto de vista profissional mas, especialmente, do ponto de vista pessoal.

Reportando-me à experiência enquanto formador, é extraordinária (e até inquietante) a quantidade de coisas que muitos jovens entre os 15 e os 20 anos de idade têm para nos ensinar… Tantas que nos transformam a humildade, aumentando-a e melhorando-a… E que nos tornam pessoas maiores…. Muito maiores…

Foi aqui que se concretizou uma das coisas mais úteis e interessantes que aprendi no curso para obtenção do CAP… Uma verdade absoluta e irrefutável: “ensinar é um processo biunívoco” (os formandos aprendem com os formadores e estes com os formandos)…

E quanto aos meus formandos, só há uma coisa que lamento: não ter tido a oportunidade de me despedir como eu pretendia… No entanto, eles sabem que os levo sempre na alma e no coração, eternamente agradecido por tudo o que me deram!

E deram-me tanto, muito particularmente momentos alegres e felizes, cheios, lá está, de gargalhadas! Certamente iguais àquelas que os meus amigos proporcionaram aos seus formadores!

Também por isso, estes meus formandos fizeram igualmente de mim um ser humano muito melhor.

Quanto a isso, à vertente humana do ensinar, o Professor Sampaio da Nóvoa escreveu que “só um ser humano consegue educar outro ser humano.

No mesmo sentido, o Professor Doutor Manuel Barbosa disse que “(…) ensinar é uma obrigação.

A partir daqui, haveria tempo e espaço para as mangas de Santa Engrácia que o pano da educação é capaz de facultar…

Vou esquivar-me a elas, cingindo-me ao passo que se seguiu à minha passagem pela Formação Profissional enquanto formador: a instrução de voo.

Admito e confesso que, pelas mais variadas razões, adiei por muito tempo a possibilidade de tirar o curso de instrutor de voo. Honestamente, tinha uma dificuldade extrema em conseguir imaginar-me a dar instrução de voo. O feedback da Formação Profissional até poderia ser um bom indicador para mudar de ideias: os formandos diziam que eu tinha jeito para ensinar…

Os resultados em disciplinas críticas como Matemática e Físico-Química pareciam confirmar que não seria apenas simpatia dos cavalheiros… Tal como os resultados, felizmente muito positivos, dos alunos a quem eu ensinei e ensino Navegação no Aeroclube de Viseu (onde comecei a dar formação como instrutor de conhecimentos teóricos em 2010).

Ainda assim, hesitei e continuei a hesitar…

Porventura porque já conhecia bem de mais a responsabilidade que faz parte da essência mais profunda e elementar do ensinar.

E formar pilotos acarreta responsabilidades muito acrescidas.

Tal como também escreveu o Professor Doutor Manuel Barbosa, o conhecimento (o Logos) era visto como coisa quase sagrada na Grécia Antiga.

E o peso do sagrado tem o condão de conseguir ser esmagador… Por vezes, de sufocar…

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Talvez porque, concordando novamente e em pleno com o Professor Barbosa, “uma pessoa que sabe uma coisa e não a ensina a outro na totalidade e o melhor que sabe é um canalha! E uma pessoa que saiba ensinar bem e que ensina mal, ou não ensina tudo, é um vigarista, um mau carácter!

Entra aqui boa parte da responsabilidade de ser instrutor de voo: a preparação contínua para o ser… Mais que isso, para se ter sempre o melhor desempenho possível na árdua e complexa tarefa de ensinar a voar. Tão complexa quanto a dimensão humana, pilar no qual assenta e se baseia quer a aviação no seu todo, quer a instrução de voo em particular.

Dessa forma, entendo que ser um bom instrutor de voo está muito além do saber tudo o que é necessário transmitir correcta e devidamente a um aluno.

Tal como um piloto de linha aérea, um instrutor de voo tem que ser um excelente gestor: o primeiro, de sistemas; o segundo, de expectativas, emoções, sentimentos, medos e anseios… do aluno e.. do próprio…

Também porque a “balda” é condição intrínseca ao aluno…

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O empenho e a dedicação em ser calão são as únicas variáveis em questão num aluno… Só depende de o aluno o ser muito ou pouco… (e aqui não esqueço que todo o instrutor de voo já foi aluno!!!)

Assim, no decorrer de uma das tarefas fundamentais do piloto (tomar decisões), o instrutor de voo é confrontado vezes com a necessidade crítica de resistir à tentação de proporcionar ao aluno a possibilidade de este experimentar o prazer e os encantos da queda-livre… sem pára-quedas!!!

E esta é uma das partes mais giras (sem que, muitas vezes, tenha qualquer piada), aliciantes e desafiantes da instrução de voo: um ser humano a ter que inventar e reinventar recursos e estratégias e o que mais quer que nem ao diabo lembra para tentar ensinar outro ser humano a vencer, da forma mais controlada possível, a gravidade!

E por falar em gravidade, eis que volta o peso da responsabilidade… E, com ele, um conceito da Engenharia Civil: o “coeficiente de cagaço“…

O qual sofre um aumento exponencial aquando da “largada” de um aluno…

O coração de um instrutor de voo perde anos de vida nessas alturas…

Mas recupera-os com as muitas alegrias que os alunos, muito ou pouco “baldas”, proporcionam todos os dias, seja na forma de mais uma “calinada”, seja na forma do sorriso que acompanha mais um passo dado por alguém que está a aprender a voar!

Naturalmente e apenas na perspectiva de que disso não resulta qualquer satisfação ou contentamento, nomeadamente para o ego, pouco me interessa se serei um bom instrutor! Sei apenas que dou tudo de mim e tudo faço para vencer o receio de poder estar a não sê-lo.

Já convivi pior com esse sentimento.

Passei a viver melhor com ele a cada novo aluno “largado”, a cada novo aluno que leva em si e consigo um bocadinho de umas das melhores coisas que sei que há e tenho em mim: o amor pela aviação!

Função desse amor, a instrução de voo está a revelar-se uma experiência maravilhosa, de tão gratificante e recompensadora que é!

Se muitos momentos e outras tantas vivências e experiências estão a ser fantásticos, sei que as recordações vão ser ainda melhores!

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E se esta reflexão é dedicada a todos os meus formandos e a todos os meus alunos, também o é a todos os meus professores.

A todos: aos bons e aos que nem por isso!

Dos primeiros guardei tudo o que me transmitiram e ensinaram!

Dos segundos, retive tudo o que recusei por não ser tão bom mas que pude transformar em mais-valias!

E é igualmente dedicada a todas as pessoas que, no caso da instrução de voo, me ajudam e facilitam o trabalho enquanto instrutor.

Sem esquecer quem quer que seja, refiro-me aos meus chefes e aos meus colegas de trabalho, que me receberam e sempre trataram da melhor forma possível e que, também por isso, proporcionam um ambiente de trabalho fenomenal! Se, por outro lado, a instrução de voo tem sido fonte inesgotável de aprendizagem e de melhoramentos, boa parte da “culpa” por isso é de todos eles!

Refiro-me igualmente às pessoas da manutenção, profissionais de excelência que cuidam, como ninguém, das “astronaves” que conseguem deixar os alunos doidos (a processar ainda mais que os giroscópios dos instrumentos)!

E refiro-me às pessoas que estão do outro lado do rádio, a contribuir, de modo decisivo, para que os voos (particularmente dos alunos a voar solo) sejam ainda mais seguros! A eles, o meu muito obrigado pela paciência, pela calma e por tudo o que, também com elas, acabam por ensinar!

Uma dessas pessoas é o José Rocha, profissional que conhece a minha opinião a seu respeito enquanto tal e pessoa que me concede a honra e o privilégio de ter como amigo!

Para ele, uma palavra de profundo agradecimento pelas razões que enunciei atrás e por ser um professor, formador, instrutor e educador que ensina, forma, instrui e educa através do melhor método possível: pelo exemplo!

Um exemplo que inspira!

Muito obrigado, Rocha!

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Pedro Neves Cruz.  12 de Novembro de 2016. Fotos Luís Malheiro e José Rocha.