O meu relacionamento com Controladores Aéreos – Take One

Ao longo de quase 3 décadas a voar (com alguns intervalos), ainda hoje me surpreendo com a evolução da pilotagem amadora em Portugal.

No final dos anos 80, quando comecei, à semelhança de tantos outros, este desporto da pilotagem constituía uma verdadeira aventura… Os ultraligeiros eram na esmagadora maioria umas “gerigonças”, (palavra muito usada hoje em dia…) de tubo e tela. E portanto, os pilotos pouco arriscavam… davam-se umas “voltinhas” à volta dos aeródromos, e pouco mais. Com algumas excepções, evidentemente!

A nossa classe de pilotos era olhada em geral de forma pouco simpática.

Lembro-me de um conhecidíssimo político, na altura Governador Civil de Aveiro, que ao olhar para o meu avião, o mais moderno dessa 1º geração, exclamou: “Nem morto me apanham nessa merda!” Fiquei-lhe com uma raiva que perdura, até hoje.

Os próprios cursos de pilotagem eram no mínimo rudimentares, não carecendo até de exames escritos finais. A teoria ia sendo “falada” pelos instrutores, muitas vezes em jantaradas e nem sequer era necessário “marrar”… Iam-se percebendo as coisas, mas apenas as mais básicas. Aposto que muitos pilotos na altura nem sabiam como é que os aviões voavam… Explicar que as asas geram centros de baixa pressão por assimetria das superfícies seria convidar uns olhares perplexos e irónicos do género “este individuo está louco!”…

Para ser 100% justo, o que se treinava de uma forma 100% competente e exigente eram as aterragens e descolagens (para alem do próprio voo) e falhas de motor. Nesse aspecto o treino era pelo menos tão rigoroso e exigente como o moderno treino de hoje em dia. Aliás, foi esse treino que me safou de 2 panes secas, em pleno voo… E o colapso do plexiglass (pára-brisas num carro) de um avião que eu estava a pilotar… Mas essas são outras histórias.

fb_img_1475695202933O relacionamento com controladores era mínimo. Nem sequer tínhamos qualquer “treino de comunicações”, a maior parte dos aviões não tinham rádio, ou se o tinham, eram portáteis, e fraquinhos.

Eu tinha um rádio já “bonzinho”, um Bendix… Mas poucas vezes comuniquei com controladores. Mesmo assim, numa ida ao Norte (região do grande Porto e mais a Norte), tive a oportunidade de contactar com um controlador do Aeroporto de Pedras Rubras, nome pelo qual era conhecido na altura. Tratava-se de um colega meu de voo que era controlador. Éramos vários aviões, e ele deu-nos a autorização de voar por cima da pista de Pedras Rubras, a baixa altitude! Atravessei a pista longitudinalmente talvez a 2 metros de altura. Ele ainda me disse “Se quiseres podes fazer um touch- and go…“, mas não tive “coragem”.

Também comuniquei várias vezes com os controladores da Base de S. Jacinto, na altura militar… Normalmente para me passarem grandes descomposturas por algumas passagens baixas, não autorizadas… Especialmente uma em que não reparei que uma companhia de “Páras” lá estava ao lado da pista, com um “chefão qualquer” a passar revista às tropas… Aí o controlador berrou-me na frequência: “Oh patinho branco, desta vez nem uma tonelada de bacalhau te safa!

Numa outra vez, de regresso de Sta. Cruz a Aveiro, quando fiquei sem combustível praticamente à vertical da Figueira da Foz (a minha segunda pane seca) e declarei “Mayday, Mayday”, tive então o “primeiro gosto” de uma comunicação formal entre um controlador aéreo e um piloto: “Queira descrever a natureza da sua emergência”. Respondo: “ PANE SECA! PANE SECA!” Resposta: “Está autorizado a aterrar em S. Jacinto, boa sorte”. Passam-se uns minutos, estou a cerca de 20 kms linear de S. Jacinto por cima da praia, lutando para manter a altitude, nova comunicação: “ CS-UBQ, passe para frequência XXXXX”… Faço-o, e comunico “SIM?” Resposta: “ Óh patinho branco, se esta é mais uma das tuas golpadas, para poderes aterrar, estás “#%&/##%$”! Reclamo que “..não, estou mesmo a planar etc…” Bem, aterrei e bem… Mas lá estava na pista um jeep com 2 PM’s….”dá-nos licença que examinemos o avião?” “Façam favor!”… Confirmam que os tanques estão vazios, e os próprios tubos de combustível também… Comunicam esse facto por rádio. Recebo uma chamada. É o controlador: ” Olha pá, vais ter que nos explicar como é que conseguiste planar cerca de 26 Kms… Já falei com o comandante, és nosso convidado para jantar esta noite”… Conheci-o finalmente, demos um grande abraço, e depois jantou-se… Só me fui embora no dia seguinte, com uma grande dor de cabeça. Voei depois com ele várias vezes, tornámo-nos amigos.

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Regressando” ao séc. XXI, em 2004 resolvo tirar o curso. Outra vez. Em Tires. Só que desta vez a “coisa” é muitíssimo mais “puxada”… Foi talvez um ano de aulas 3 vezes por semana… Duro, muito duro, especialmente depois de um dia de trabalho. E claro, as Comunicações também fazem parte do curso.

E nem podia deixar de ser! Tires é facilmente o aeródromo/aeroporto mais ocupado e frenético de Portugal, perante tantas escolas de Aviação e consequentes aterragens e descolagens. O ritmo é por vezes impressionante. E portanto, a necessidade de treinar as comunicações… Eu e os meus colegas de curso treinamos e treinamos (entre nós), e claro que nos próprios voos de treino já falamos directamente com controladores. Profissionais!

Começa portanto nesta altura o meu “relacionamento com Controladores Aéreos”.

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Voar, e especialmente em “voos solo” pode ser, mesmo para apaixonados como eu e tantos outros pela arte de voar, um desporto MUITO SOLITÁRIO… E aquela “voz” nos auscultadores acaba por ser a ÚNICA LIGAÇÃO que temos “com terra”. E SABEMOS que para ele (o Controlador) não somos apenas um “blip” no radar… E quando nos contacta, com informações, confirmações e instruções, para mim (e mais uma vez, para tantos outros) tal constitui um GRANDE CONFORTO!

E é também minha impressão, de tantas horas a ouvir “Lisboa Approach” e “Lisboa Mil” e outros, que a forma como estes controladores comunicam com os “pesados” é bem diferente da forma como comunicam com os ”lights” e “ultralights”… Digamos que com os “pesados”, as comunicações são 100% profissionais… Como devem obviamente ser. Enquanto connosco são “mais humanas”, mais pessoais. Profissionais, sem dúvida, mas com mais “calor”… Arrisco afirmar até “com mais carinho”… DESDE QUE não existam motivos, complicações e erros por parte do piloto, claro! Aí o tal “calor humano” transforma-se em “profunda irritação”… Também me aconteceu, mas já lá chego….

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Começo portanto a ser conhecido e a desenvolver um relacionamento com Controladores.

Ainda no curso em Tires, começo a voar solo, aí pelas 24 horas… Desconfio que no voo de exame, será “Casa Branca” o destino escolhido pelo examinador… Começo a treinar voos até Casa Branca. Mas não é fácil, o Alentejo Sul é uma vastíssima planície com poucas referencias. Num desses voos, já em pleno Alentejo, comunico com Lisboa Mil: “Lis Mil, COC”, “Go ahead, COC”, “Ahhhh, Lis Mil, requesting vector to Casa Branca from present location”… Resposta: ”Are you lost COC?Haaaaaaaaa, that’s affirmative Lis Mil…”, OK, COC, try harder! Como é que vai passar o curso se não se consegue orientar, Lis Mil…” E tal transmitido numa voz simpática, jovial… Surpreendidíssimo, emito um “Roger, Lis Mil, COC”….E lá consegui identificar o terreno e consequentemente, Casa Branca! E no exame, afinal o destino não foi Casa Branca… Mas como é que o controlador sabia que eu estava treinar navegação? Foi fácil. Eu devo ter ido (ou tentado ir…) umas 6 vezes a Casa Branca, aliás sempre submetido nos planos de voo… Facilmente depreendeu que estava a treinar. E deu uma ajudinha!!

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Depois, já no meu avião na altura, o CS-UOC, em voo de adaptação juntamente com um piloto da fábrica do Petrel, aproxima-nos de Tires, vindos da Barragem de Montargil, onde pratiquei dezenas de amaragens. O vento está fortíssimo, pelo menos 30-35 Kts, por cima da Caparica… É tarde, estamos talvez a 40 minutos do por do sol…Contacto Cascais Tower: “Cascais Tower, boa tarde, COC requesting landing instructions….”, “Boa tarde, COC, Cascais Tower, proceed directly to Alfa point”… Assim faço. Contacto da Torre: ”COC, you are clear to land, cross wind factor 29 knots…”, ”Roger that, Cascais Tower…” Mas 29 nós?? Volto à carga: “Cascais Tower, please confirm 29 knots cross wind”…”That´s affirmative, COC”…E de repente, em Português: “Ohh Charlie Oscar Charlie, é o único avião no ar, o vento está fortíssimo, completamente atravessado, o que é quer fazer…? não viu o forecast, pois não?” O piloto brasileiro diz-me: ”Minino, diz ao cara que vamos aterrissar e pronto!” Cascais Tower, vamos mesmo aterrar, low on fuel e tempo”… A Torre responde: “Charilie Oscar Charlie, clear to land, 29 knots cross wind, good luck!”.

E iniciamos a descida, numa frenética bombagem nos pedais… O Brasileiro berra “DÉSCÍ PORRA, DÉSCÍ PORRA!” num brasileiro de sotaque quase impenetrável… E descemos, e descemos, toque na pista, salto, toque na pista…e ficamos! O Brasileiro exclama “Pista filha da …..!”. Recebo mais uma comunicação da Torre: ”Charlie Oscar Charlie that was not easy….Congratulations”… e enquanto transmite ouço outra voz no background: “ehh pá, aquele gajo é doido!

To be continued…

Pedro Cameira Gomes (Cpt. Kirk). 28 de Outubro de 2016. Fotos Luis André Diogo, Luis Rosa, José Rocha.