Uma ida a Tróia – a primeira…

Nas minhas viagens para o Algarve e Sul de Espanha, passei muitas vezes por cima de Tróia.

E várias vezes testemunhei que na maré baixa aparecem areais em frente à ilha, isto é a Oeste da ilha, em mar aberto. Não completamente aberto, já que, quem faz face a Oeste, verá que o complexo montanhoso da Arrábida se situa à direita, numa vasta e lindíssima península.

Um pouco farto das centenas de amaragens em represas eu e a minha garota resolvemos “dar um saltinho” a Tróia, “mudar de cena”.

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Estamos talvez em 2009, Maio. Faço o “homework”, confirmo quais os timings da maré-baixa, e descolamos. Não está propriamente calor ainda, mas a viagem é rápida e agradável. Podemos escolher entre 6 ou 7 línguas de areia, aproximo-me da escolhida e amaro “em grande estilo”. Serão cerca das 11.00 da manhã.

Com a ajuda do motor, entro pelo areal, e saímos do avião. O areal terá cerca de 60 metros de comprido por uns 40 metros de largura. Calculo que estará talvez a uns mil metros de Tróia, a Noroeste. A areia é branco-dourado, finíssima. Estamos completamente sozinhos num ambiente de sonho! A água é azul-turquesa, praticamente não existem ondas. O céu está azul, sem uma nuvem, naquela tonalidade que só (curiosamente) encontro em Portugal. Retiro uma mini âncora retráctil, de 3 ganchos, cravo-a cuidadosamente na areia.

Estendemos umas toalhas, perto da água. Não está muito calor, mas deitados nas toalhas, com a radiação solar, está-se muito bem. Não trouxemos fatos de banho, mas ponho-me em shorts, e tiro a camisa. A garota também. O silêncio, para além do ligeiro burburinho da água, é impressionante. Levantamo-nos e vamos dar um passeio pelos “nossos domínios” a ver se topamos golfinhos…. não vimos nada. voltamos a deitar-nos nas toalhas. Levantou-se uma agradável e ligeiríssima brisa.

Começo a ficar “preguiçoso”, “entorpecido”….do canto do olho, vejo que a “piquena” está exactamente na mesma…. adormecemos.

Acordo violentamente com uma sensação horrível nas pernas (e não só…) de milhões de agulhas a perfurarem-me a pele! Ao mesmo tempo, ouço um berro, a minha piquena também acordou… pois, deixamo-nos dormir, e vem aí a maré alta! Olho para o relógio, passaram-se 2 horas e meia!

Estamos molhados até a cintura, as toalhas estão molhadas, felizmente usamos os sacos como almofadas! Levantamo-nos, ainda estou “meio drogado” de sono. E a São berra outra vez:” Ouve lá, o avião, aonde é que está o avião?” Respondo: “Hummm?”.  “Acorda pá, o avião foi-se!”

Acordo mesmo, e freneticamente “olho a volta”…. não consigo ver o avião. Entretanto a ilhota já está significativamente mais pequena. A piquena localiza o aparelho: “Olha, estás a ver aquele ponto pequeno a tua direita? É o avião!”

Localizo-o. É de facto, “um pontinho”. Rapidamente concluo o que se passou: A maré subiu, a âncora desprendeu-se e o aparelho foi-se! Tenho que o ir buscar. Mas como?

Olho a minha volta freneticamente, a ver se vejo um barco, para me levar. Não vejo nada!

A São, bem mais prática: ”Pá, tens que ir a nadar. E já! Senão não o apanhas!”

Penso: “estou F#$#”%###!”

CAVOK.pt

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O pontinho está cada vez mais pequeno. Não tenho opção, estou de shorts, precipito-me para a água. Está GELADA!

Mas que remédio! Tenho mesmo que ir. Mergulho. E ponho-me a nadar, esperançadamente na direcção do avião. Dentro de água, já nem o vejo!!

E nado. E nado. E vou “magicando”: “Hummm, penso que estará talvez a uns 800 metros de distância…” Mas depois ocorre-me: ”porra, mas eu nunca nadei 800 metros!…e agora”?

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Noto que a brisa está agora mais forte e o mar mais agitado…Penso: “OK, são os tais ventos marítimos que aprendemos no curso, mas não consigo lembrar-me se vão de mar para terra na maré baixa, se ao contrário!!” …e continuo sem ver o aparelho!!

Entretanto, estimo que nadei pelo menos 200 metros, e estou a ficar cansadíssimo… Como resolver? Noto que a corrente está a meu favor e magico: OK, não posso continuar com este ritmo, senão morro, vou deixar-me levar pela corrente… Mas depois ocorre-me: Eh pá, se a corrente me está a levar, então também está a levar o avião… Nunca mais lá chego! É como voar dentro de uma massa de ar… O tal “wind speed factor”… Só que estamos na água. Mas o princípio é o mesmo!

Apoderasse de mim uma sensação de desespero….”Não vou lá chegar, o avião vai-se “desmerdar” todo nas rochas! “Estico” a cabeça o máximo possível fora de água… e vejo o avião, CLARAMENTE mais perto! “Olá!”….Talvez consiga!!

Mas depois “magico” outra vez: “Não percebo, se estamos (eu e o avião) numa massa de água com um vector de velocidade em vento e na própria corrente, então o avião, com muito mais superfície que eu, deveria afastar-se de mim… Não percebo!”

Mas “faz-se luz”: “ Aha! É a âncora. Está pendurada pelo nariz do avião e cria fricção!”

Entretanto, já nem sinto as pernas, estou rebentado. Estou gelado, estou DESESPERADO….E é “aí” que compreendo que a não manter a calma, corro o risco de me afogar….A situação, admitidamente anedótica, transformou-se (realisticamente) num drama: Estou longíssimo de terra, ninguém me vai salvar. E o “instinto de sobrevivência” entra em funcionamento. E penso “bardamerda para o avião!”.

Viro-me de costas, e paro de nadar. Flutuo apenas, e deixo-me levar pela corrente…Esta já está com uma velocidade apreciável, penso que entre os 2 e 3 nós. Esperançadamente, chegarei ao aparelho antes que este bata nas pedras. Se bater, tenho o seguro!

Super_Petrel

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Vou-me acalmando. E descansando. E magicando:

Lembro-me do meu primeiro curso de UL, tirado em Aveiro em 88… Depois de largados, tínhamos que voar solo cerca de 30 horas. Na altura em “Tocano” cuja velocidade (num dia bom) seria aí de 80 Km/ hora….MONÓTONO!

Eu voava sempre na direcção do mar. Entretinha-me com as vistas. Um dia, já perto de completar as 30 horas, lá estou a voar da direcção Norte/Sul, por cima da praia, “chateado”….E vejo ao longe uma “pseudo-pista”, que chamava-mos o “areão”….Mesmo ao lado da praia. Essa “pista” era para “craques”, com um buracão a meio, tinha-se que aterrar MESMO ao princípio, para depois nos desviarmos do tal….ATERREI! Pensei: “Eh pá, vou queimar” aqui uns minutos! E deitei-me na areia, dia quente, cigarrinho, etc….Acordei com 2 Tocanos por cima da pista, estavam a minha procura!

Ainda vislumbrei o semblante pesadíssimo do meu querido Amigo e Instrutor Sr. Capitão Abílio Ferreira, que se ler estas linhas se vai lembrar de certeza absoluta!

Tinham-se passado 2 horas! Se, na altura, me “adivinhassem” que décadas mais tarde, iria outra vez adormecer na areia, com consequências gravíssimas, EU NÃO ACREDITARIA!

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Voltando ao “presente”. Estou GELADO, mas fisicamente recuperei. Algo. De repente ouço um barulho por cima: É um avião! A voar baixíssimo, está claramente a chamar-me a atenção. Olho na (esperançada) direcção do meu avião… Vejo-o! Está pertíssimo, talvez a 30 metros!

Faço o sinal de “OK”, repetidamente, para o avião que tem estado a descrever voltas. Vejo um braço a dizer-me adeus…Volto a nadar. Estou lá quase!

E de repente ocorre-me: “E a chave! Meu Deus, e se a chave da ignição não está dentro do avião??”

Não consigo lembrar-me se a tirei ou não….Nas represas, tiro-a sempre da ignição mas deixo-a no avião….

Chego ao avião. Estimo que estou talvez a 600-800 metros de uma praia que me parece ser O Portinho da Arrábida….Mas não tenho a certeza!

Tento içar-me para dentro do cockpit O Petrel tem uma concavidade de cado lado, para o efeito. Mas dentro de água, é muito difícil. Magoo-me num pé ( só depois é que confirmei que parti uma unha, pé direito). Finalmente, ESGOTADO, sento-me no assento. Estou GELADÍSSIMO.

Começo a tremer violentamente. Mas confirmo que deixei a chave no assento do passageiro. Não lhe consigo pegar, tais são os tremores. Sei de antemão que se trata de uma reacção ao frio, tenho que esperar que passe. Com CALMA. Senão entro em choque. Bato com os braços e as mãos no peito, nas costas, nas pernas. Passam-se minutos, os tremores estão a passar. OK.

Chave na ignição, fuel pump, magnetos, choke, ligo o motor. Arranca à primeira. No sentido de se visualizar a minha posição, imagine-se que se está em Tróia, a olha para Oeste, i.e. na direcção do mar ( e não para o canal entre Tróia e Setúbal ). Eu estou posicionado (muito) à esquerda, na direcção da Arrábida.

O vento está mais forte, e já se vêem umas “carreirinhas” na corrente. Fico com vontade de explorar a costa, até para aquecer o motor….MAS, lembro-me da minha garota! Quanto tempo é que se terá passado? Pelo menos uma hora, senão mais! Ainda haverá ilhota??

E lá vou contra a corrente….Devagar, muito devagar, é IMPRESSIONANTE como num anfíbio como o super-petrel, (muito baixo) navegando contra a corrente e o vento, as ondas BATEM com intensidade no plexiglass….E claro, entra muita água, mas tenho um “bilge pump”.

Lá consigo avistar a ilhota…Só que já não está a superfície da água, vejo a São com água pelos joelhos, braços esticados com os sacos, e um olhar “esgazeado”: “Então pá, DEMORASTE TANTO TEMPO!”. “Tá mas é calada, ia morrendo”, respondo eu.

Mas o “drama” acabou….A São está sentada, cintos apertados, motor quente, temos que descolar….É IMPOSSÍVEL decolar contra o vento e contra a corrente. Ao mesmo tempo, aprendi por mim próprio que a água do mar, sendo mais densa que a água doce (das represas) torna a descolagem mais difícil. Poder-se-ia argumentar que tal densidade também faz com que o casco do anfíbio “assente” menos na água salgada (do que na doce).

É possível, nunca medi. Mas SEI que preciso de mais espaço para descolar…E nem vou arriscar. Vou a favor da corrente, e volto à direita (quando acaba Tróia) para entrar no canal entre a ilha e Setúbal. Aí, as águas estão mais calmas. Embora continue a haver corrente. Mesmo assim, tenho que percorrer todo o canal, i.e., dirigir-me para Sul, para então poder levantar. A FAVOR DO VENTO.

E descolo…

Ao atingir 1.000 pés contacto Lisboa Approach (tinha registado previamente o voo, para Tróia, mas sem confirmar hora de regresso, “to be advised”.: “Lisboa Approach, Charlie Oscar Charlie”. Resposta:” Oh Charlie Oscar Charlie, então foi bom o banho?” Tal numa informalidade surpreendente e divertida, voz de gozo, e MUITO PENOSA para mim….”Ahhh, Lisboa Approach, obrigado, pequeno incidente, o Cessna reportou foi?”

Roger that, Charlie Oscar Charlie, mais cuidado próxima vez, sim?” Roger, Lisboa Approach”. E seguiram-se depois os trâmites normais.

Acaba aqui esta narrativa. “Aprende-se” algo com o que aconteceu? Talvez não adormecer na praia…prender melhor a âncora… Num anfíbio, é muito possível que no mar, seja preciso descolar a FAVOR DO VENTO.

Voltei muitas vezes aos gloriosos areais ao largo de Tróia, na maré baixa. E uma vez (e mais uma vez…) não prendi bem a ancora. Mas, como já não adormeci, apanhei o avião ainda na rebentação.

Tive ainda um incidente em Tróia mais tarde. Esse MARCOU para sempre a minha vida de piloto.

Um dia, com a disposição correcta, TALVEZ o escreva. Ainda DÓI.

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Pedro Gomes.  29 Agosto 2016. Fotos Luis Malheiro e Aleksander Markin