O Incidente com os Galitos

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Histórias de Aviação – Pedro Gomes

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Artigo de Opinião

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Quem sou?

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Joao Pedro Cameira Gomes, 58 anos, mestrado em Economia e licenciatura em ciências politica, tirados nos EUA.

Profissionalmente, trabalho em Bacalhau desde 1985, quando vivia ainda nos EUA. Produzo e exporto bacalhau da Noruega para todo o mundo, incluindo obviamente Portugal. Passo cerca de metade do ano nas ilhas Lofoten, na Noruega, situadas 300 kms a norte do círculo polar árctico, onde tenho fábricas e escritório.

CAVOK.ptPaixão pela aviação, tenho-a desde que me conheço: desde tenra idade, fazia os meus aviões em papel, e conseguia-os fazer voar mais tempo do que qualquer outro colega, na altura!

Depois, no Liceu D. Pedro V em Sete-Rios, fins dos anos 60, olhava para os aviões que passavam por cima do Liceu, tentava identificá-los…Normalmente, 707 e 727 da TAP. E por vezes o Caravelle.

Já nos EUA, e trabalhando nos serviços de terra da TAP em NYC/ JFK, pude entrar nos cockpits, “arregalando” os olhos perante tantos instrumentos…Pareciam-me “mágicos”.

Mas a culminação da minha paixão por aviões e por voar advêm de ter tido o enorme privilégio de voar repetidamente nos cockpits de aviões da TAP: Um primo meu, o Cmdt. Félix Mendonça, na altura chefe de operações de voo da TAP, e que voava constantemente para NYC, deixava-me viajar no cockpit!  Viajei muitas vezes nos 747 da TAP, o “Portugal” e o “Brasil” entre NYC e LIS, LIS e LAD e tantos outros destinos. Mas essas são já outros histórias, que oportunamente relatarei.

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Hoje, descrevo-vos um “incidente” que me ocorreu, penso que no longínquo verão de 1989 na Ria de Aveiro; Tendo o seu “quê” de anedótico, poderia ter sido bem mais grave! Vou designá-lo por “incidente com os Galitos”.

Na altura, eu tinha um ultraleve anfíbio, o primeiro do seu tipo em todo o mundo. Era o Petrel, motor Rotax de 64 cavalos, que tinha comprado em França, asa dupla, cockpit aberto. Era o CS- UBQ.

Ora, eu passava muito tempo em Aveiro, mais especificamente na Gafanha da Nazaré, onde tinha várias instalações de processamento de bacalhau. E como sempre (nada mudou!), o stress do dia-a-dia era enorme. Como tal, do que eu mais gostava, ao fim do dia de trabalho e naquelas tardes soalheiras e sem nortadas, era “dar um saltinho” ao N/ campo de aviação na Promaceira (Entre a Gafanha da Nazaré e Aveiro), decolar e voar por cima da Ria, amarando (ou não), relaxando no voo, com um bom par de auscultadores, ouvindo música, voando baixinho, enfim, “carregando as minhas baterias”, como só quem voa compreende!

E foi o que fiz naquele dia. Normalmente voava acompanhado, tinha sempre uma longa lista de amigos que queriam ir comigo. Mas desta vez, a minha ânsia de voar era tão grande, que fui sozinho.

A tarde estava perfeita. Sozinho no cockpit, sem o peso do pendura, o avião “pulou” da pista. Entro no espaço da Ria. Rapidamente atinjo os 1000 pés. Por baixo, a ria parece um espelho, com “pontinhos de cor” que são os barquinhos na labuta de pesca. Apodera-se de mim uma sensação de bem-estar tão agradável, quase que me emociono. Tiro motor, faço uma “glissagem” endireito talvez a 20 pés…Meto motor a fundo, subo outra vez. O avião está a comporta-se maravilhosamente. Sinto-me intimamente ligado à máquina, atinjo um estado “zen”. Olho para baixo, para a ria. Vejo uma espécie de “piroga”, com muitos remadores. Desço, para ver melhor.

Aha! Trata-se de um “skiff” olímpico de 8 remadores + 1 timoneiro. Estão a treinar. Devem pertencer ao clube dos “Galitos”, em Aveiro, penso eu.

Apodera-se de mim uma sensação de alegria, uma espécie de “joie de vivre”. E que se converte (muito rapidamente) na vontade de fazer uma “malandragem”…Imagino-me um piloto na segunda-guerra, com um torpedo no corpo do avião.

Subo, “full power”. Posiciono-me na perpendicular do rumo do “skiff”, já levando em consideração a deslocação. Pico. Estabilizo talvez a 12 pés. Motor a fundo, aponto directamente para o centro da embarcação. “full power”, “razo-a” mesmo a meio, e depois puxo o manche. Subo quase na vertical. Entretanto largo uma enorme gargalhada de satisfação, e olho para trás…Vejo que criei alguma “comoção”, a embarcação está a oscilar lateralmente…Melhor me sinto! Mas, as oscilações são cada vez maiores…Olho outra vez. A embarcação virou-se! Os remadores estão todos dentro de água, consigo ver alguns punhos fechados apontando para mim.

E caio em mim. “Meu Deus”, que fiz eu??

Aterro quase imediatamente. Nem meto o avião no hangar. Corro para a minha viatura, em 5 minutos chego a uma das N/ fábricas. Berro ao encarregado: “Arranja-me já 3 caixas de bacalhau Jumbo e mete na bagageira!” São 75 kgs do bacalhau mais caro…

Sei onde está localizado o Cube dos “Galitos”. Guio loucamente, chego lá num ápice. Saio do carro. Á minha frente, vejo um individuo, de sobrolho carregado, a olhar-me fixamente. Reconheço-o imediatamente. É o presidente…

Sun Tzu escreveu: “A melhor defesa é o ataque”; E tento: “Oh Sr. Presidente, como está, passou bem? Calcule que houve um pequeno incidente na Ria, entre o meu avião e o “Skiff de 8” que estava a treinar, imagine!” O individuo N/ abre a boca, continua a olhar para mim, muito profundamente…Insisto: “ A culpa é toda minha, imagine que o motor do avião engasgou-se, fui forçado a descer, e por coincidência passei por cima da embarcação…Mas olhe, pelo incómodo que causei tenho aqui 3 caixas de bacalhau do melhor, para a V/ cantina….N/ sei se sabe, mas trabalho em bacalhau, já nos conhecemos previamente, enfim….”

O Sr. Presidente retorque (finalmente!): ”Sei muito bem quem o Sr. é, Dr. Pedro Gomes…E também sei muito bem o que é que aconteceu, já fui informado telefonicamente. O Sr. devia ter mais juízo! O Sr. revela-se um garoto!” E por aí em diante, nem consigo escrever, ainda hoje estou envergonhado.

Fico portanto reduzido “a minha expressão mais simples”, mas ainda consigo retorquir: “Bem, eu apenas trouxe 3 caixas, mas posso mandar mais algumas”….

Entretanto, chega uma carrinha com 9 indivíduos completamente molhados. N/ saem, saltam da carrinha e sou mimoseado com várias expressões, bem conhecidas, algumas começam com a palavra “filho” e outras. Penso que vou levar no mínimo, uns chapadões. Preparo-me.

CAVOK.ptO Sr. Presidente dá um berro: “Calma que ele paga!”, e aproxima-se de mim. Em voz alta diz-me então: “O Sr. está a tentar comprar esta instituição por algumas caixas de bacalhau? Está a tentar subornar-nos?” Emito um “não, não” muito baixinho. Entretanto estou rodeado de 8 matulões encharcados, + o timoneiro (esse pequenino) com musculaturas verdadeiramente impressionantes.

O Sr. Presidente persiste: “Olhe, o que Sr. fez vai ter consequências! A minha vontade é telefonar para a polícia marítima, e o Sr. vai de choça!  Ou então deixo-o aqui ficar com estes atletas durantes uns minutos! O que é que acha? Eu respondo, timidamente: “As minhas mais profundas desculpas” …

O Sr. Presidente N/ desiste: “E o Sr. acha que desculpas são suficientes, hã?? O Sr. vai pagar caro a sua garotice!” E vira-se para os remadores: “Oh rapaziada, tenham calma que ele paga! Quem é que aqui já voou nessas gerigonças?” Ninguém responde…o Sr. Presidente vira-se então para mim, e com um ligeiro sorriso nos lábios (que optimistamente me fez pensar que já me tinha safo) verbaliza o seguinte: “Oh rapaziada, quem é quer dar uma voltinha no “patinho branco”? Todos levantam a mão…Eu penso, “OK,OK, são nove voos, despacho isso numa manhã, já me safei”

E aproveito para comentar em voz baixa e humilde, a amenizar: “Ah, o Sr. Presidente já conhece o meu avião, chamam-lhe o patinho banco…N/ é?”

O Sr. Presidente quase que me berra:”Claro que conheço, o Sr. é bem conhecido da camara de Aveiro pelos disparates que tem feito, por exemplo voar por cima do estádio de futebol, fazer rapadas em S. Jacinto quando lá estão os páras, aterrar em estradas, voar a noite, o Sr. N/ tem juízo! O que o tem safo é que o Sr. lá com o bacalhau é bem visto na polícia, nos bombeiros, e trata bem os seus funcionários. Mas quando voa o Sr. é um perigo! Como é quer fazer? Chamo a polícia? Respondi rapidamente: “Não, não, tenho o maior prazer em levar estes magníficos atletas a dar uma voltinha…”

O Sr. Presidente N/ pára: “E acha que isso é suficiente? N/ é!” E berra para um dos remadores: ”Oh! Beltrano, levanta aí as caixas de bacalhau do carro e leva lá para dentro. E traz-me um bloco de notas”. E depois para mim: “Olhe, para sair daqui, sem ser para o hospital ou para a choldra, o Sr. vai fazer o seguinte: Vai levar todos estes atletas a dar uma voltinha na sua geringonça, mais quem cada um deles quiser que vá dar uma voltinha também. Está de acordo?”

Respondi imediatamente: “Sim, sim, com certeza”. E aí o Sr. Presidente fez uma lista de pessoas que no Sábado e Domingo voaram então comigo. Foram 48 decolagens, 30 e poucas amaragens (já N/ me lembro) em dois dias de um tempo maravilhoso em Aveiro. Voei com os remadores, com namoradas, tios, pais, avós e filhos. O Sr. Presidente nem apareceu.

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Lá me safei. Aprendi alguma coisa? Claro que sim: É preciso manter a “cabeça fria” quando se voa.

Voltei a fazer disparates? Não! Mas décadas depois, e com outro avião e os surfistas da Ericeira…Bem, mas essa é outra história.

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Pedro Gomes

28/11/2015

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