Benavente e o Referendo

Escrevo estas linhas após regressar a um país que da noite para o dia viu a sua realidade violentamente mudada, e onde só daqui a alguns meses ou anos iremos perceber as reais repercussões. Os tempos que se aproximam são difíceis e recheados de incerteza. Mas o que não me sai da cabeça foi ter voado num Quicksilver e num avião acrobático pela primeira vez no 6º Aniversário da Tertúlia de Benavente…

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mike silva

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Mal podia acreditar no que tinha lido mal abri o computador de manhã. O primeiro-ministro britânico tinha-se demitido, e todo o país estava em choque com o resultado do referendo. Os ingleses decidiram que queriam sair do União Europeia. Como calculam, foi um choque brutal. As conversas de café, tinham alvitrado estes meses todos, que na eventualidade de um cenário de  Brexit (um palavrão que conglomera Britain e Exit), a polícia viria armada de cassetetes e metralhadoras pontapear-nos para fora das nossas casas, fazendo-nos marchar com os nossos pertences até ao aeroporto debaixo de cânticos de “Brittania rule the waves”. De certeza que esta tinha sido também, a imagem mental que motivou muito ignorante xenófobo inglês a correr à mesa de voto naquele dia.

Estou apreensivo, como qualquer cidadão inteligente está neste momento. Todos sabemos como isto das  maiorias funciona por vezes de um modo reactivo e imponderado. Como os políticos são eleitos por demérito, e como as populações votam por vingança ou por estarem fartas de ninguém lhes ligar nenhuma. Ou se calhar a saída da união europeia, um organismo burocrático pesado e distanciado dos povos europeus que não o representa e ludibria, pode ser uma coisa boa e fazer emergir uma Europa e uma Inglaterra moderna e desenvolvida. A Democracia e o povo falaram, e temos de respeitar isso e seguir em frente. É esta talvez a maior conclusão que devemos retirar deste processo.

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No entanto, e enquanto no café dos portugueses me aconselham a arranjar um terreno em Portugal para cavar batatas porque “isto vai ficar bera”, a minha cabeça não consegue esquecer o fim de semana passado no Campo de Voo de Benavente, por ocasião da sua Tertúlia. Este foi a sua sexta edição anual. Para quem não conhece o que é este evento, deixem-me tentar explicar de uma forma simples uma situação hipotética: Imaginem um espaço onde pudessem juntar uma quantidade de aviões, estar com os amigos, rir, comer e beber. Mas onde não houvessem fitinhas nem vedações nem ninguém com um colete reflector à vista. Onde quiséssemos ver um avião por dentro, e o dono aparecesse e nos deixasse sentar lá dentro, ou melhor, nos convidasse a voar. Onde se pudesse atravessar a pista seguramente acompanhado de um profissional, tendo ao mesmo tempo uma lição sobre o que é a “perna base” ou “perna final”, aprendendo in loco sobre como se processa a aproximação de um avião e como nos comportarmos de uma maneira segura quando de visita a um aeródromo. guilhermino3Passar ao pé do José Rocha e perguntar como funciona a torre de controle dum aeroporto. E ouvir as comunicações a serem feitas. Perceber o que é aquele palavreado estranho de “Uniform-Sierra no ponto de espera da três-três”. Como adquirir ao fim ao cabo conhecimentos para uma melhor cidadania e adquirir uma percepção mais alargada de como é que “isto“ dos ultraleves funciona. Porque em Portugal, a palavra “ ultraleve” só surge nas notícias quando há um acidente. Houve um curso sobre segurança de ultraleves? (Que é que isso interessa!) Um ultraleve saíu fora de pista? Abertura de telejornal em directo do local! Inaugurou-se uma sede de uma Associação de Aviação Ultraleve? (Associação de quê? )…Aterrou um ultraleve de emergência num campo cultivado? Primeira página no “Correio de embrulhar peixe”.

Era bom que houvesse um local assim. Que nos esquecêssemos onde estávamos, porque passámos horas sentados numa mesa de bancos corridos a falar sobre motores radiais e de segurança de voo, com as mãos cheias de gordura por causa de uma sandes de chouriço assado na brasa. Interrompidos de vez em quando por um amigo que chega e que insistimos em abraçar fortemente, e o obrigamos a juntar à conversa. Ou por cavaleiros de uma herdade vizinha que nos visitam com os seus belos cavalos , vincando de uma forma indelével o carácter ribatejano do evento. Pois este é o cenário habitual que nos arriscamos a encontrar na Tertúlia de Benavente.

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Para , literalmente, ajudar à festa, resolvi apresentar o meu mais recente livro dedicado à aviação ultraleve neste evento. Trapo e tubo é um trabalho duzentos por cento auto-biográfico, e dá a conhecer uma história que achei que devia partilhar com toda a comunidade. A minha história. Um emigrante de meia-idade com cabelo a menos e peso a mais que não desistiu enquanto não realizou o seu sonho. (Se por acaso ainda não tem este livro, faça de conta que já tem, ou então não diga a ninguém). Foi também entregue uma placa de comemoração das 3000 horas de voo ao icónico e competente instrutor António Palma, entregue pelo presidente de Câmara Municipal de Benavente, dado que a totalidade destas horas foram realizadas sobre os céus desta região ribatejana.

Um dos momentos do dia foi a possibilidade de voar num avião acrobático, uma das façanhas que ao longo dos anos tinha vontade de riscar da minha lista. A bordo do icónico e histórico Citábria do competente e grande amigo Pedro Cunha Pereira, dei ordem para ele “partir aquilo tudo” a bem da experiência jornalística. O robusto e reforçado aparelho descreveu manobras apenas comparáveis ao programa de secagem de uma máquina de lavar roupa sobre os céus de Benavente, na vã tentativa de pulverizar os seus bancos com o conteúdo do meu estômago. Não é para os mais fracos, mas admito que não sou do mais forte. Mais um bocadinho, e de facto o tejadilho do Citábria iria ter bocados de chouriço. Correu bem.

O momento alto viria com uma ocasião muito especial para mim. Embora para muito seja como beber um copo de água, para mim estive 30 anos à espera deste momento: Voar num Quicksilver! Quem ler o meu livro sabe como este avião foi crucial e importante para mim. Foi o primeiro avião onde me sentei aos comandos com 16 anos, e foi o primeiro ultraleve “como os outros aviões normais” onde soube que os interessados podiam aprender a voar com custos acessíveis. Voei em Tiger Moth, Broussard, T6, Stearman, Beech18, Caravelle, DC3, e mais uma quantidade deles, mas nunca tinha voado num Quicksilver! Um momento tão especial que até escrevi uma crónica sobre isso, e que irei partilhar convosco brevemente. Posso dizer que nunca voei num avião que me desse uma sensação como o Quicksilver. Absolutamente único.

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A memória desta 6ºTertúlia CVB perdurará comigo até ao próximo evento que me seja possível frequentar. O Inexcedível e humano Paulo Cunha “Touareg” como se não lhe bastasse ser o mentor e organizador desta  festa da aeronáutica portuguesa, ainda por cima, como em todos os eventos até hoje, fez questão de angariar e entregar à associação “Servir” um importante donativo que ajudará de uma forma crucial o trabalho louvável, impressionante e pouco conhecido de recuperar jovens toxico-dependentes para a Sociedade. O contacto com estes jovens trabalhadores abre-nos o coração e emociona-nos, e levamos o seu exemplo connosco. Foram eles que montaram este evento todo!

Quanto ao Futuro de Inglaterra fora da União, julgo que este país mais uma vez, tal como tem feito ao longo da história, dará a todos uma lição de resistência e determinação, e sairá vencedor e mais fortalecido deste inesperado mas importante episódio da sua História.

Um abraço a todos e bons voos.

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Mike Silva. Escritor e autor de Trapo e Tubo. Fotos Guilhermino Pinto. 26 Junho 2016