A viagem de Moto-planador Alemanha-Portugal

Voo: Ferry de Aalen-Elchingen Alemanha para Viseu

Aeronave: Moto-planador SF25D “Falke”

Motor: Limbach 60cv

Autonomia: 4,40 horas

Vel. Cruzeiro: 70 Knots

Carga Útil: 200 Kgs

Equipamento: Velocímetro; Altímetro; Variómetro; Bússola; COM.

Tripulação: João Rosa e Arlindo da Silva

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Há cerca de 4 semanas, ao percorrer a minha página de Facebook vejo, que o meu amigo João Rosa tinha adquirido um SF25D Falke, que ainda se encontrava na Alemanha, a Este de Estugarda, em Aalen-Elchingen. Sem qualquer esperança, porque imaginava, que o João teria um infindável número de interessados para o ajudar a trazer o moto-planador, mesmo assim, decidi oferecer-me. Quase em simultâneo, o João convidava-me para a aventura. Pensei, saiu-me a sorte grande!

Já fiz a viagem através da Europa, mais de vinte vezes, quase sempre com um tipo de avião diferente, com todo o tipo de meteo e com o mais variadíssimo tipo de equipamento e, muito antes da era GPS, mas nunca com potência inferior a 100 cv.

Ter a oportunidade de fazer a viagem numa aeronave com 60cv à descolagem e, 46cv em cruzeiro, sem transponder e com o equipamento mínimo, tinha  sabor a desafio, a pioneirismo e não deixava de ser empolgante, oportunidade que eu, jamais perderia.

Daí até combinar com o João as datas para a viagem, foi um ápice e, ficou logo assente o dia 27 de Maio. Eu voaria para Memmingen, na Ryanair, no dia 26 à noite, onde por sorte tinha a minha auto-caravana e encontraria o João no dia seguinte em Aalen Elchingen, a cerca de 95 Kms, onde este já se encontrava há dois dias.

Retirada à máquina do hangar, tive pela primeira vez a oportunidade de dar uma olhada à cabine  e embora prevenido, mais claro ficou, que iria ter que haver grandes compromissos e decisões difíceis a tomar, sobre o que levar como bagagem. Entre os manuais com as cartas de aproximação dos 4 países que iríamos sobrevoar, GPS, ipad, auriculares, cartas de navegação, etc, tinha 12 kg. O Falke pode transportar 10 Kgs na bagageira, se assim se pode chamar.

Analisada a meteorologia, com ameaças de CB´s por todo o lado, mas dava para perceber que a primeira perna de 3 horas até Besançon não apresentaria grandes obstáculos. Ainda na sala de briefing, chegou o momento de decidir o que acompanharia como bagagem e aquilo que ficaria, tendo em conta a limitação do MTOW e do espaço na cabine. Pela minha parte, decidi deixar o manual com as cartas de aproximação alemãs, retirando apenas a de Aalen Elchingen e todas as cartas de navegação que estavam em duplicado, etc. Como bens pessoais, levaria dois pares de cuecas e duas t-shirts, uma escova e a respectiva pasta de dentes. O João, estava já de mala “aviada”, sem vontade de “revista”, mas porque eu insisti, ele abriu-a relutantemente e começo por descobrir o creme para a pele, mais o creme para…, depois de alguma negociação , acabamos por chegar a um consenso. Chegados ao avião, deparei-me com 5 garrafas de ¼ litro de água e um saco com maças, bananas e 4 pretzel (uma espécie de regueifa alemã). Nova discussão e, finalmente concordamos que só embarcariam 2 garrafas, (as restantes três o João foi oferecê-las a um piloto alemão que estava preparar o seu avião) uma para cada um e o saco com fruta iria nos bancos, entre nós os dois.

Eu fui o primeiro a entrar e percebi logo que os bancos eram extremamente desconfortáveis. Ainda não estava sentado há dois minutos e, já me doíam as costas, mas estava focado na viagem que vinha a seguir e releguei esta questão para segundo ou, terceiro plano. Burro, porque tinha almofadas na auto-caravana e podia ter tornado o assento mais confortável. Entretanto foi a vez do João entrar, e ao fazê-lo, escorregou mais para o meio, sobre o saco da fruta, transformando as bananas num batido.

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Aalen Elchingen, Alemanha – Besançon, França

Descolamos sem problemas, com o João aos comandos e à minha pergunta sobre o comportamento da aeronave, respondeu-me que o compensador estava todo nose up!!!! Acertamos o rumo e começamos a viagem, que eu tinha estudado exaustivamente. O avião subiu bem para os 4500 ft QNH e agora colocava-se apenas um desafio. Evitar os espaços aéreos controlados, rezando para que a meteorologia não nos obrigasse a fazer grandes desvios.  Como eu ia passar a maior parte de tempo com os olhos metidos nos mapas, Ipads e afins, incumbi o João de vigiar o espaço aéreo e, não tardaram 20 minutos  para ele me chamar a atenção, para um ponto à nossa esquerda, que os seus olhos treinados de piloto de planador haviam detectado. O ponto foi tomando a forma dum elegante planador, que cruzou à nossa frente, da esquerda para a direita, à mesma altitude. Decorridos mais 3 minutos  e a cena repete-se. Era sexta-feira e actividade era residual e muito diferente dos fins de semana e feriados.

Com um pequeno desvio por norte e baixando 1000 ft, evitamos a TMA de Mulhouse (Euroairport, situado em França, mas serve 3 países, Alemanha, Suiça e França). Até Besançon, depois de cerca de 3 horas de voo, quer o avião, quer a meteo, quer o espaço aéreo estiveram à altura do expectado, excepto a dor de costas que se tornou crónica e, se estendeu aos glúteos.

Abastecida a aeronave com uns “astronómicos” 32 litros, eu fiquei junto ao avião a planear a perna seguinte de mais 3 horas e, a tentar tornar o assento mais confortável, usando as cuecas e as t-shirts, enquanto o João foi pagar a taxa de aterragem. Regressou passado 40 minutos, com as cartas de aproximação de Saint Yan, explicando-me que o Aero Clube local o ajudara a localizar um aeródromo na nossa rota, que podia hangarar o Falke. Preocupado com as questões práticas do voo, nunca tinha pensado na pernoita do Falke. Os TAF´s previam agravamento do tempo durante a noite, pelo que acolhi a ideia com agrado e, alterar o planeamento inicial foi “piece of cake”.

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BesançonSaint Yan

Uma hora e dez minutos depois estávamos aterrados em Saint Yan onde fomos acolhidos de braços abertos, tendo o director do aero clube local, para além de nos disponibilizar hangar, nos reservar hotel, nos mandar transportar ao hotel a cerca de 10 minutos de carro, também nos recolheu no dia seguinte às 8,30 horas. Eu tinha tomado um frugal pequeno almoço bem cedo, numa qualquer autoestrada alemã e eram cerca de 22 horas quando nos sentamos finalmente à mesa para jantar. Durante a noite choveu torrencialmente à passagem de vários CB´s, cujos relâmpagos entravam pela janela do quarto, parecendo de dia.

O aeródromo Saint Yan é muito interessante e tem aspecto de ser civil/militar, com hangares antigos de zinco, ainda com algumas fuselagens de aviões militares Etendard e Fouga Magister. O nosso destino seguinte era Marmande a cerca de 3,10 horas de voo. A meteorologia apresentava-se instável com CB´s por todo o lado, que me preocupavam, na medida em que podiam bloquear a passagem por um lado, quando pelo outro, podia ter espaço aéreo controlado.

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Saint YanMarmande

Descolamos e, passado 20 minutos de voo começaram a surgir estratos no nosso nível de voo. Decidimos manter-nos por baixo da camada mas, estes estavam cada mais baixos e, as cartas de navegação indicavam subida do terreno. Estávamos a aproximar-nos do maciço central francês, pelo que só nos restava voltar para trás ou, tentar subir por um buraco acima dos estratos. Se melhor o pensamos, ainda melhor o fizemos e pouco depois o Falke tinha-nos “catapultado” para uns estratosféricos 6.500 ft QNH.

Grande parte do espaço aéreo que íamos cruzar, era da responsabilidade do ATC de Clermont Ferrand, que declinou liminarmente autorização para voarmos espaço aéreo Delta, mas deixando-nos a liberdade de passagem por espaço aéreo Echo mediante estimas e passagem por “report points” o que era óptimo porque não nos obrigava a grandes desvios. Desde que tínhamos saído de Aalen, que o vento se mantinha moderado de frente, (os 70 Knots indicados eram na realidade 65VT) mas estava a aumentar, à medida que avançávamos para sudoeste. Ao fim de 3,10 horas de voo estávamos aterrados

em Marmande com duas pista paralelas, uma de 1.200 metros, asfaltada e, outra de relva com 800 metros, com iluminação, com hangares, com torre mas, sem vivalma. Era Sábado, tentamos em vão contactar alguém através dos números existentes no aeródromo mas, ou ninguém atendia ou, não funcionavam. Aprendemos a lição e, agora só descolaríamos, com a certeza de que haveria alguém para nos abastecer no aeródromo de destino. Depois de vários telefonemas, Mimizan garantia-nos abastecimento e a meteo local recomendava-se e, ficava a cerca duma hora de voo, ligeiramente à direita da nossa rota. Feitas as contas, deveríamos chegar ainda com cerca de 30 minutos de reserva, o terreno era mais “amigável” e afinal o Falke é um planador pesadão e, planador é habitual aterrar fora, por isso, motor a trabalhar e rolagem imediata para a pista, porque o motor ainda estava quente.

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MarmandeMimizan

Cerca duma hora depois tocávamos com  o trem do Falke na pista de Mimizan, depois do avião de paraquedistas, nos ter informado que não havia informação de pista e, nos ter indicado a pista  em uso. Estacionamos o Falke em frente à bomba de gasolina e, logo apareceu quem nos reabastecesse, confirmando que ainda tínhamos 5 litros para 30 minutos de voo, conforme os nossos cálculos. Estávamos,  eu e o João, a discutir a perna seguinte, cada um do seu lado do avião, quando se  dirigiu a mim um individuo com ar superior, a falar francês, na casa dos 30 anos de idade, com uma t-shirt com a frase “Trust me, I´m pilot”. Como não falo francês, o João que o fala muito bem, interveio de imediato e, o dialogo desenrolou-se entre os dois, mas eu percebi que o problema era o facto de termos feito as comunicações em inglês. Como a nossa intenção era continuar viagem, o mais rápido possível, não queria entrar em discussões e ignorei o assunto. Porém, quando estávamos na sala de briefing a consultar a meteo, estavam presentes, para além do “Trust me, I´m pilot”, mais dois indivíduos, um deles provavelmente director do aeródromo, que continuavam a ruminar em francês, sobre o facto de não termos feito as comunicações na sua língua. A minha paciência esgotara-se entretanto, por isso perguntei ao “Trust me, I´m a Pilot” se falava inglês, o que ele confirmou com um sim, e então exibi-lhe a carta do aeródromo em que consta “AD reserved for radio equipped  ACFT” não havendo qualquer menção à obrigatoriedade de falar francês. Assim sendo, num aeródromo não controlado, as comunicações serão às cegas e impera a regra “see and avoid”. Os franceses procuraram, em vão, uma restrição ou, uma proibição, pelo que o assunto ficou por ali. Entretanto, o João encetou outro tipo de conversações, no intuito de conseguir hangar para o Falke, o acabou por acontecer, contra a minha vontade, porque eram apenas 3 horas da tarde e ainda podíamos voar pelo menos mais 3 horas. Mais tarde acabei por reconhecer que foi a melhor opção, porque dali para a frente, não só era mais difícil conseguir gasolina, como também hangares e, os CB´s continuavam ameaçadores por todo o lado. Os franceses, que a princípio se revelaram hostis, acabaram por mostrar o seu lado mais hospitaleiro e, organizaram-nos onde pernoitar e jantar, no próprio aeródromo, em troco duns poucos euros. Aproveitamos a tarde para organizar o resto da viagem. A meteo indicava ventos mais fortes  dali para a frente, pelo que, em Burgos não conseguíamos falar com ninguém e Valladolid era bastante arriscado em termos de autonomia. O João, por iniciativa própria ligou para S. Sebastian e foi respondendo a algumas perguntas à menina que o atendeu, entre elas sobre a envergadura da aeronave. Quando o João indicou 15metros, a menina informou logo que era necessário requerer handling à Ibéria e isso, segundo a menina, era uma regra que se aplicava a todos os aeroportos espanhóis, para aeronaves desta envergadura. Eu nem queria crer no que estava a ouvir e, tentei convencer o João a desligar o telefone, mas ele já estava a ver a vida dele a andar para trás e, queria a todo custo encontrar uma saída. Finalmente consegui falar com o aeroporto de Vitoria, que depois passei ao João para continuar em espanhol, porque em inglês não nos entendíamos, e a única dificuldade parecia ter a ver com o horário, mas o João explicou que iríamos chegar dentro do horário. De noite choveu copiosamente e pela manhã, enquanto tomávamos o pequeno almoço, continuava a chover. O Falke não gosta de chuva, nem no solo, nem em voo, afectando substancialmente as suas performances.

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MimizanVitoria Espanha

Felizmente à hora de descolagem a chuva tinha cessado e pudemos descolar, via Biarritz e S. Sebastian. Eu estava bastante apreensivo, porque não tínhamos grandes alternativas, se Biarritz ou S. Sebastian não nos autorizassem a passar através do seu espaço aéreo. O APP de Biarritz não pôs qualquer obstáculo, mas tinha dúvidas que S. Sebastian nos aceitasse no seu espaço aéreo sem transponder. Felizmente, decorridos alguns minutos, Biarritz informou que S. Sebastian nos autorizava a prosseguir segundo o plano de voo, ficando obrigados a reportar cada um dos Report Point do corredor VFR.

Entretanto tínhamos sido informados dum outro problema. O aeroporto de Vitoria estava fechado até às 10,45 locais, (e, então percebi, porque a menina em Vitoria tanto insistia no horário) quando o nosso ETA era às 10,30 horas. Felizmente a meteo estava a colaborar e os Pirenéus já se apresentavam à nossa frente com toda a sua deslumbrante beleza com o sol penetrando através dos cúmulos, arrancando reflexos prateados à paisagem. Decidimos voar no regime mais económico para gastar tempo, mas mesmo assim íamos chegar às 10,35 horas e como a TWR de Vitoria respondeu à minha chamada, tentei negociar a aterragem antes das 10,45 horas, mas em vão. O aeroporto estava fechado e não havia excepções, por isso, fomos para espera, para o November Point, onde havia uns excelentes cúmulos, que aproveitamos para fazer voo-à-vela, até às 11 horas, altura em que finalmente o aeroporto abriu. Autorizados a aterrar na pista 22 com 3500 metros, fomos encaminhados para a placa, onde não havia um único avião, mas onde cabiam 20 airbus A320. Depois de uma espera de 30 minutos pelo abastecimento, mais 5 minutos a abastecer e mais 30 minutos a passar a factura. Já cheirava à burocracia portuguesa. Havia agora que descobrir o ARO e pior ainda, como chegar lá. O Chefe dos bombeiros prontificou-se a levar-nos, mas só tinha lugar para um, pelo que como éramos dois, teve que requerer outro transporte. Quando o nosso transporte chegou, olhei à volta procurando a câmara escondida, porque os meus olhos não acreditavam no que viam. Era o autotanque dos bombeiros de 40 Toneladas, que projecta a água a 50 metros de distância. Mas, como a cavalo dado não se olha a dente, lá fomos todos divertidos a caminho do problema seguinte. Chegados à saída do aeroporto dentro do aeroporto, não era possível sair, aparentemente porque não havia chave para abrir a porta, pelo que o despacho fez-se através duma janela entreaberta.

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VitoriaBrangança

Depois de dificuldades com a impressão da factura, acabamos finalmente por regressar ao avião no autotanque. Peço à TWR para nos deixar descolar na intercepção, pois ainda tínhamos mais de 1.800 metros, sobejamente suficientes para o Falke, que descola em 170 metros, mas o pedido foi terminantemente recusado, pelo que não nos restou se não taxiar quase 2.000 metros até à cabeceira e quando chegamos ao final da pista de 3.500 metros, depois de descolarmos na penúltima perna até Bragança, já estávamos quase na altitude cruzeiro.

A visibilidade estava boa, mas quer à esquerda quer à direita, estava pejado de CB´s. Autenticas muralhas negras e ameaçadoras, carregadas de energia. Seguimos por entre elas, quase sem termos que nos desviar do nosso rumo, mas o vento de frente aumentava significativamente e, a nossa velocidade terreno caía para uns míseros 47 Knots.  A turbulência aumenta, ao passarmos a meia dúzia de kms dum CB gigante à nossa esquerda, depois dum desvio de cerca de 15 Kms. Ao fim de quatro horas de voo, chegamos finalmente a Bragança, com uma manga de vento completamente esticada e perpendicular à pista. Advirto o João que não temos muita gasolina para borregos. O João ripostou, que aquilo era como um planador, ou seja, não há borregos. Aterragem cinco estrelas. Abastecer só o suficiente para chegar a Viseu  em segurança, porque a gasolina em Bragança é proibitiva (a mais cara de todos os aeródromo onde aterramos).

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BragançaViseu

Uma hora e trinta minutos depois aterrávamos em Viseu depois de 17 horas de voo. Ainda estou para saber se a dor nas costas, e não só, se devia ao desconforto dos assentos do Falke ou, se era apenas consequência do stress ou, se o saco da roupa teve o efeito que eu pretendia. Na verdade, a viagem, em termos de conforto não foi assim tão dolorosa como a princípio temi.

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Grande máquina e, modéstia à parte, grande crew.

Arlindo Silva. Fotos Arlindo Silva.