Incidente na Ria de Aveiro

Depois do terrível ataque de ansiedade que me provocou uma aterragem de emergência em Espinho, como já descrevi em “uma ida a Braga”, fui-me tratar. Estive 8 meses sem voar.

Após os tratamentos, sinto-me bem. Perdi 10 Kgs, fisicamente, mentalmente e profissionalmente estou bem. Muito bem até. E retorna-me a vontade de voar. Com gana!

E voo. Por toda a parte. Até a Santa Cruz fui. De Aveiro. Na altura, considerado um recorde de distância. Mas essa é outra história.

A minha namorada telefona: “Olha, o meu tio Beltrano, que tu conheces, gostava muito de ir a Aveiro… Para comer umas línguas de bacalhau, e voar contigo! Que dizes?” Eu digo que sim, obviamente. Combinamos.

E lá chega o dia. O tio, acompanhado da tia, ficam em minha casa. No dia seguinte iremos voar, amarar, e depois comer as tais línguas de bacalhau.

Chegam. Eu de facto já conhecia o Sr., mas não me lembrava bem dele….Já tem mais de 70 (e muitos) anos. É GRANDE (talvez 1,84 m) e FORTE…A tia é substancialmente mais nova.

Não comento, mas já estou a fazer “contas de cabeça”. Nessa noite, a tia comenta “Sabes Pedro, o tio não fala noutras coisas senão dar uma voltinha contigo, e as línguas de bacalhau….Mas é seguro o avião, não é Pedro”? Respondo que sim, absolutamente, seguríssimo. Retorque ela: “É que o tio tem um pequeno problema de coração, nada de especial, está controlado, tem pacemaker…

Haaaa” respondo e  ”…mas já falou com um médico, acerca de voar?” “Não, não é preciso, temos viajado por toda a parte….

Fico naturalmente preocupado. Voar de jacto é completamente diferente de voar num ultraligeiro, de cockpit aberto…. E se lhe acontece algo? Ausento-me por uns minutos e telefono para o meu médico, descrevo-lhe a situação. Este responde: “ Pá, se o gajo diz que está bem, então é porque está…Ouve, a trepidação não é muito boa, mas faz um voo no máximo aí de uma hora, não deve haver problema, desculpa estou ocupado, tchau!

A minha vontade é de não o levar a dar a “voltinha”. Mas o brilho nos olhos do tio, o entusiasmo, a antecipação….Resolvo fazer um pequeno teste, ao meu estilo. Volto para a sala: “Tio, e que tal um wiskyzinho antes do jantar, para abrir o apetite”? Responde: “ Oh filho, que excelente ideia, mas com gelo e água, sempre dura mais…”OK, bom sinal. Se estivesse “mal”, não deveria beber….

Vamos jantar fora: Ensopado de enguias…” Oh tio, vai um tintol?” “Ahh, sim meu filho, mas só um, de cada vez!” Hummmmm, parece-me que a “coisa” está OK. E a tia só sorri, não comenta se o tio bebe ou não bebe….Começo a relaxar.

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Dia seguinte, Promaceira, 10 da manha. O tio tem o seu “sweater” da caça, bem quentinho…Mas não está frio, e o tempo está magnifico para se voar. Entretanto, estou a fazer os meus cálculos do peso…

Tenho vergonha de perguntar ao tio quanto pesa, mas pergunto a tia: “Oh tia, o tio pesará ai uns 90-95 Kgs…?” “ Sim filho, por aí, por aí….”. Assumo 110 kgs, eu estou com 85 Kgs, assumo 200 kgs, total. Muito peso….Mas a solução é fácil: Encho metade dos tanques, fico aquém dos limites.

O tio senta-se no avião, mas com dificuldade…É “volumoso”. Entretanto já lhe meti o lifesaver, e lá lhe consigo apertar o cinto de segurança, nos limites. Explico-lhe os procedimentos, estamos prontos para o “start-up”.

Entretanto, explico a tia como será o voo: Iremos primeiro a Pateira de Fermentelos, amaramos, e depois regressamos fazendo uma passagem baixa por cima da pista. Demorará cerca de 10 minutos para lá, cerca de 10 minutos amarados, e mais 10 minutos para regressar, e fazer o “low pass”. Depois, e praticamente a frente da pista, iremos amarar na ria onde ficaremos mais uns 10 minutos. Podem-nos ver. Depois regressaremos a pista. A tia relaxa visivelmente.

Descolamos. Facilmente. O avião comporta-se maravilhosamente. Volta a direita, direcção Pateira. Vou perguntando: “Tio, está bem, sente-se bem?” Reposta: ”YEAHHHHH! Tenho 30 anos outra vez!”. Até tira os braços para fora do cockpit, como se fosse um garoto numa montanha russa.

Faço a minha aproximação a Pateira, que é sempre interessante: Volta apertada á esquerda, full pedals, full power, depois endireito, pequena glissagem para a esquerda, redução de potencia para as 3.200 e amaro a voar. Impecável.

Desligo o motor, deslizamos suavemente pelas águas “espelhadas” da Pateira. “Então tio, sente-se bem, gostou?” “ Ohhh filho, tiraste-me 30 anos de cima de mim, bem hajas!”. Entretanto, está a entrar água pelo casco, mas nada de especial. E tenho bomba.

OK, fumo o cigarrinho do costume, passam-se 10 minutos, ligo o motor. Dirijo-me para a margem, quero o máximo de distancia para a descolagem, volta de 180º, full power.  O avião está “pesado”, é água doce, menos densidade, mais resistência na descolagem. Mas tenho espaço. Atinjo os 62 kms/hora, deixo-o atingir os 68 Kms/ hora, puxo o manche…Descolamos com facilidade.

O tio: “YEAHHHH!” E braços de fora outra vez.

8 minutos depois, avistamos a Promaceira. Para “brilhar”, reduzo motor para ralenti, explico que estamos a perder altitude para a tal passagem baixa por cima da pista. A 30 pés nivelo, full power, e passamos por cima da Promaceira, onde estão a tia e a namorada. Ligeira inclinação para a direita, para que o tio possa vê-las bem….Estão encantadas, aos pulos. O tio acena “desvairadamente”…

OK, amaragem na Ria: Aponto o avião, pés firmes, redução as 3.200, touch-down suave, ao lado de um ilhéu para onde mandam animais doentes. Motor desligado, ficamos praticamente parados. “Então tio, sente-se bem?”: “ Eh pá, que maravilha, e esta a noite as linguinhas de bacalhau…”.

Entretanto ouço um ligeiro barulho: Está a entrar água no avião…Com mais intensidade. Confirmo que o ralo está bem tapado…Ligo a bomba de escoamento. Entretanto a minha namorada telefona, está excitadíssima. Depois é a vez de o tio falar com a tia…Entretanto estou a ficar preocupado, a água não para de entrar, mesmo com a bomba debitar…”OK tio, vamos embora!”

Escolho a direcção de descolagem, mas o avião está “letárgico”. Full power, o nariz levanta, começamos a rolar, e de repente, de REPENTE, o cockpit enche-se de água! A água entrou em catadupa, temos água até a cintura! Estamos completamente molhados. O tio olha para mim, olhos arregalados…Oh Pedro, isto é normal??”

Digo-lhe que não. “Tio, vamos dirigirmo-nos para a margem da ilha”. E tento. Tenho um leme náutico atrás, accionado pelos pedais, aumento a potencia, estou a tentar virar na direcção da ilha.

Mas não estou a conseguir…Entra cada vez mais água. O avião não obedece. Estamos talvez a 50 metros da margem. O tio berra “Porra, estamos a afundar-nos!” De facto as asas inferiores já estão ao nível da água…Retorno o berro: “Tenha calma!”

De repente o tio “arranca” o cinto de segurança. “Vou nadar até terra!” E começa a sair do avião, o que AGORA é bem fácil, é só “resvalar” para fora…Ainda consigo accionar as cápsulas que lhe enchem o colete, e o tio resvala para fora do avião. E começa a nadar. Penso para mim: “estou lixado (….semelhante…) ainda lhe dá alguma coisa!”

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Entretanto o avião, sem o peso extra, ganha alguma capacidade de manobra…. Consigo então chegar a margem antes do tio. Saio do avião e vou ajudá-lo. Este pragueja como um “estivador”.

Consegui não molhar o telefone, este estava num bolso superior do meu fato de voo. Telefono a minha namorada, conto-lhe o que aconteceu. E que está tudo “bem”….

Entretanto, baixo o trem, para poder subir na praia, e COMPREENDO o que aconteceu! Abro o ralo, a água começa a sair, e rapidamente, com a ajuda da bomba. Explico ao tio, mostro-lhe o que aconteceu. Que nunca me tinha acontecido. “Tio, 10 minutos, e saímos já daqui…” Resposta: ”Não ponho mais os pés nessa merda, nem que me paguem!” E telefona a tia: “Oh beltrana, arranja-me um barco, porra, quero-me ir embora!

Estou pronto para partir…Insisto ainda com o tio, mas este é veemente. Está “possesso”. E COMPLETAMENTE molhado…Mas também eu!

Aguardo então que chegue a embarcação, que lá leva o tio.

Meto o avião dentro de água, ligo motor, não descolo, “salto para o ar”…. Por uma questão de algum “orgulho de piloto” (chamo-lhe assim…), passo ao lado do barco, e aceno com as asas.

Depois aterro. Aguardamos pelo tio. Este chega, visivelmente mais calmo. Pede-me desculpa pelos palavrões, e volta para minha casa, para tomar um bom banho quente.

Depois naquela noite, comem-se as línguas de bacalhau, o tio bebe uns “bons copos”, e acabamos a noite as gargalhadas. “Happy Ending!!!!!”.

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E afinal, o que é que ACONTECEU?

O Pétrel ainda era construído em França, na altura. E eu comprei o primeiro avião: Depois do protótipo. E é normal existirem potenciais problemas que só ao longo de anos de voo, é que vão sendo identificados.

Neste caso, o problema que originou o parcial “naufrágio” do aparelho teve a ver com o trem de aterragem. Na altura, o trem de trás (as 2 rodas) era independente do trem da frente. A 2 rodas subiam através de cabo e manivela; Dava-se a manivela, e o trem lá ia subindo. Mas era preciso “força e jeito”. Já o trem da frente era bem mais fácil de subir: Puxava-se um cabo, a roda subia facilmente. Depois esse cabo era “fixado” como em veleiros: Dispunha de um “lock mechanism” constituído por 2 peças com eixos nas extremidades, e superfície rugosa. O cabo encaixava nestas 2 peças, que o apertavam, por meio de molas. Tal como num barco.

Ora o cabo, ao fim de centenas de descolagens e aterragens foi-se desgastando…E portanto o “aperto” dado pelas molas já não seria o mesmo, pelo desgaste do cabo, e das próprias molas, que também vão perdendo a força.

O que aconteceu foi o seguinte: O cabo foi-se “libertando”, fazendo com que a roda da frente descaísse lentamente…Mais a própria protecção contra a entrada de água, que estava ligado a própria roda. Quando amarei na Ria, a roda já deveria estar semiaberta, daí a entrada de (alguma) água. Ao descolar, o atrito fez com que o cabo se soltasse completamente, isto é a roda ficou totalmente para fora. Como tal, a água entrou violentamente dentro do cockpit.

Como é que eu me apercebi? Porque ao descer o trem de trás (e o da frente também), para poder subir a margem, reparo que o cabo da roda da frente estava completamente solto. Ou seja, a roda já estava na posição de aterragem ANTES de eu largar o cabo.

Este problema foi facilmente resolvido com um novo cabo, e molas mais fortes.

E o “Tio” ficou com um história inesquecível que ao longo de anos foi contando, para “gozo” dos ouvintes.

Acabou “tudo em bem”, mas tivemos SORTE! A situação cardíaca do Sr. poderia ter sido um factor negativo, e se a roda da frente se tivesse soltado em PLENO VOO, ANTES de uma amaragem, correríamos o sério risco de “capotar”….

Os novos Petrel estão hoje equipados com luzes: Verde para trem em “down position” e Azul para “up position”. Tal não evitou um outro incidente que TALVEZ um dia vos conte, e que se passou décadas depois….

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Pedro Gomes.  10 de Fevereiro, 2016