Uma ida a Braga

Depois de ter escrito três “histórias de aviação”, por serem sobretudo anedóticas (embora SEMPRE com a preocupação de transmitir algum conhecimento), hoje, no primeiro dia de 2016, decidi escrever sobre a talvez mais traumática experiência de aviação, da minha vida.

Acho importante fazê-lo, porque reflecte aspectos fundamentais para quem voa.

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Ainda hoje “me dói” relembrar.

Estamos talvez em 1993. Tenho no mínimo mais de quatrocentas horas de voo. Não me considero um “craque” mas sinto-me seguro e experiente.

Entretanto a minha vida privada e profissional sofreram um enorme abalo. Divorciei-me, e separei-me da empresa que criei. E faço-os ao mesmo tempo!! Brutalmente! A decisão foi minha e só minha, mas custou muito tomá-la. E continuo no Bacalhau. Decido ir viver para Aveiro, alugo um apartamento na Barra. Mas psicologicamente não estou “muito bem”. Profissionalmente, estou óptimo, mas no fundo, estou “magoado” e “fragilizado”.

E francamente, nem me apetece voar! Mas voo, de vez em quando. Já não tenho é aquela “excitação de voo”. Calculo que se trata de uma situação passageira, devido ao que aconteceu na minha vida.

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Um dia, penso que na primavera, dou um “saltinho” à nova pista da Promaceira. Não sei se me apetece voar, mas vejo vários carros, vou lá ver o que se passa.

Deparo-me com um grupo de indivíduos, alguns deles meus amigos, a caminhar juntos e apressadamente pela pista fora… um deles tem na mão um aparelho qualquer, rectangular e com um ecrã. Estão excitados.

Ao verem-me, quase que correm para mim… mas sempre a olhar para o aparelho “Olá, como está, nem queira saber o que aqui temos!” Espreito… não tenho ideia do que seja. Pergunto ”O que é?”, “É pá! É um GPS! Global Positioning System! Esta merda diz-te exactamente onde estás! Olha o passeio que demos na pista, está aqui desenhado! Até te diz a velocidade a que nos movemos!” Fico entusiasmado. “Deixa-me experimentar!!”. E lá vou eu, corro pela pista fora, e…lá está “desenhado” o meu percurso!

Fico entusiasmado. Eu sabia que “GPS” existia, aliás desde os anos oitenta. Mas era utilizado para fins militares. E nunca tinha visto nenhum! Estamos todos excitados. “Eh pá com isto podemos voar para toda a parte, não nos enganamos”, “…pois, mas tem que estar com pilhas novas, senão imagina!” E por aí em diante…

Combinamos então o que para pilotos de ultraligeiros da primeira geração, seria (na altura) quase impensável: Uma viagem “longa”: Escolhemos Braga, como o nosso destino. Existe lá um aeroclube, já nos tinham visitado (de carro)… gente simpática… e, é longe de Aveiro!

Vê-se a previsão meteorológica, acordamos o dia. Já não me lembro se somos cinco ou seis aviões, alguém que ler isto lembrar-se-á!! A ideia é simples: seguimos o avião equipado com o GPS e chegamos a Braga. Vamos fazer um “vistaço”!

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Chega o dia!! Entretanto, a minha namorada (na altura) vem de Lisboa, será o meu pendura.

São oito da manhã… descolamos, um a um. Eu sou o último e de propósito. O meu avião voa mais rápido, tem que seguir os outros, tenho que ter “espaço”.

Denota-se “alguma nortada”…. a manhã está fria!! O meu avião tem “open cockpit”. Não estou completamente confortável. E rapidamente vou ultrapassando os outros aviões. Com a nortada, os outros nem devem atingir 80 Km/hora, velocidade de terra… o meu atinge pelo menos 100 Km/hora. Não me apetece fazer “voo lento”…dá um trabalhão e o motor pode sobreaquecer.

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Entretanto no rádio, os comentários: “Oh patinho branco, mantenha-se na posição!” e “… voa mais lento, pá!”. Mas o facto é que não consigo. Não me apetece. Resolvo de outra forma: Quando ultrapasso o líder, inicio uma volta de 360º… e deixo passar todos os aviões! Depois retomo o rumo.

Mas dá muito trabalho. A volta tem que ser bem medida, e não posso perder de vista os outros. Utilizo os binóculos e cuidadosamente coordeno a volta.

O voo deixa de ter “piada”. Estou concentradíssimo e não me posso perder. É claro que se me perder, volto a Oeste, e sigo a linha de praia, de volta a Aveiro. Mas eu também quero chegar a Braga!

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No total, penso que efectuei talvez umas 25 voltas de 360º até avistar o aeródromo… Estou extenuado não gozei o voo!! Finalmente, aterro. Mesmo por trás do líder.

Ao sair do avião, um dos pilotos, que eu mal conhecia, berra-me: “Ouça lá, a sua posição como combinado, não era a de ser o ultima avião? Porque é que me ultrapassou?” Explico-lhe o que se tinha passado, com bons modos. E que inclusivamente, confirmei que a minha aterragem não “cortou” ninguém… Resposta “vai mas é para o (um certo sítio)!

Perco a cabeça. Corro para o individuo, vou parti-lo aos bocados… dois pilotos, meus amigos, conseguem bloquear-me. Ainda bem! Mas fico agitadíssimo, incomodadíssimo, e não me passa!

Almoça-se…à fartazana!! Penso que uma feijoada. Bebe-se…tintol!!

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Após o almoço, hora de regressar. Dirijo-me a um dos meus amigos pilotos e informo-o: “Oh Beltrano, agora à volta, não vos vou seguir, rumo a Oeste, e sigo a linha de costa!!”. Este responde-me gentilmente: “ Oh Dr. Pedro Gomes, mas não acha que se viemos juntos, também devemos regressar juntos?”… explico (mais uma vez!!) o que aconteceu, as tais voltas coordenadas que deram um trabalhão. Além disso, só me apetece “partir a tromba” ao cretino que me insultou… não estou “bem”.

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Descolo!! Rumo Oeste, imediatamente. Mas começo a sentir uma sensação de ansiedade…Que vai “crescendo”. A minha namorada não se apercebe. Ainda bem. Penso: “OK…Assim que avistar a costa, isto passa-me!!!

Mas não passa!

Pelo contrário, aumenta e exponencialmente. Estou quase a ter um ataque de pânico. Quando avisto a Costa, algures a sul do estuário do Douro, meço a minha pulsação. Estou pelo menos a 130!!! A “piquena” nada nota.

Uma sensação de MAL-ESTAR apodera-se de mim.

Eu sei o que é a “ANSIEDADE”. Sofro de ansiedade desde que me casei… fui inclusivamente tratado por médicos especializados. Voar para mim sempre foi como um ansiolítico, mesmo em situações “extremas” como algum dia contarei.

Tento…tento racionalizar: “Pá, típico ataque de pânico, normalmente são dez ou quinze minutos, e depois passa”.

Mas não passa. Pelo contrário agudiza-se. Agora, a sensação que sinto é de MORTE IMINENTE.

Eu li (e reli) dezenas de livros sobre ansiedade, depressão, pós stress etc. etc…

A melhor descrição sobre o que é e o que se sente num ataque de ansiedade foi dada pela Dra. Claire Weekes, especialista australiana: “É como estar a andar numa corda bamba entre dois arranha-céus, e de repente, sentir-se que se vai perder o equilíbrio, sem solução”. Isto é, REALIZA-SE, NAQUELE INSTANTE, que se vai morrer!!

E é assim que me estou a sentir!!

A pulsação está agora a 160… pela primeira vez, a “piquena” olha-me e pergunta-me: “Estás bem?”, ”Mais ou menos…” respondo.

A sensação de “MORTE IMINENTE” agudiza-se, quando vejo ao longe o aeródromo de Espinho. Anda consigo pensar: ”Aterro ali!!

Mas já não aguento!!!… viro-me para a Ana Carlos, e digo-lhe: “Ana, estou-me a sentir MUITO MAL, posso morrer, vais ter que aterrar…”. Esta olha-me, tira os óculos… está esbugalhada. E grita: “O QUÊ???” Respondo: “ É fácil, vais ver, tiras motor, pedais firmes, apontas para a água, e puxas o manche….”. Resposta: “TÁS DOIDO??”…. “NÃO! SINTO QUE ESTOU A MORRER!

De repente, levo um chapadão, dela claro (grande mulher!).

Fico tão surpreendido, deu-me uns momentos de alívio, lembro-me de baixar o trem.

Mas a sensação de MORTE IMINENTE volta outra vez… Grito: “NÃO AGUENTO!”.

Levo outro chapadão, fico sem os óculos de voo.

Aponto para a pista. De qualquer forma, de qualquer maneira. Tiro o motor, todo.

Não me lembro de ter aterrado. Sei que “saltámos” várias vezes, porque me foi dito posteriormente.

O avião pára, algures na pista. E de repente, DE REPENTE, a sensação de MORTE IMINENTE esvai-se, DESAPARECE…. é como se não a tivesse tido!!

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Entretanto, vejo vários indivíduos a correr para o avião… fico onde estou!! Um deles, que conheço, aproxima-se e diz-me: ”Então, Dr. o que foi isso, a aterragem, nem parece seu…

Olho para ele, desato a chorar.

Respondo, aos soluços “Senti-me mal, pensei que ia morrer!

Chegam mais pessoas. Sou quase levantado em peso, do avião. Deitam-me no chão, na pista. Medem-me a pressão arterial, auscultam-me. Estou NORMAL.

Levanto-me. Caminho para o snack-bar do aeródromo.

Alguém empurra o avião para o hangar.

Sento-me, bebo uma água. Estou muitíssimo mais calmo.

Entretanto, o individuo que primeiro falou comigo (e que me conhece) já se apercebeu de TUDO. Penso que é bombeiro. E conversa comigo. Uma das conversas mais PROFUNDA, mais CARINHOSA, mais GENTIL que jamais ouvi em toda a minha vida.

Não me lembro do nome dele. Mas, se porventura e oxalá, ele esteja a ler estas linhas, que saiba que nunca o esquecerei. Fiquei e ainda hoje o sinto, PROFUNDAMENTE GRATO.

Ficámos dois dias em Espinho, num hotel. Relaxei completamente.

No regresso a Promaceira, ao iniciar a decolagem, o trem colapsou! Tinha ficado danificado da aterragem…Mas usou-se um cinto (de calças!) e lá levantámos!! Passados vinte minutos aterrámos na Promaceira, impecavelmente!!

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E depois? Fui-me tratar, estive oito meses sem voar. NUNCA MAIS tive qualquer ataque de ansiedade. Dito isto, quando as “coisas” não correm bem”, tenho ansiedade, evidentemente, mas é “natural”… e voar, para mim, constitui até hoje o MAIS PODEROSO ansiolítico que já experimentei.

E continuo a voar. Devo ter perto de 1.000 horas, no total.

CUSTOU-ME BASTANTE relembrar e descrever este episódio, que nunca esquecerei.

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Porque é que o fiz? Porque considero que uma das lições MAIS IMPORTANTES que um piloto TEM QUE TER SEMPRE PRESENTE é a seguinte:

Se por alguma razão, não lhe apetecer voar, que não o faça! Não force. Não insista. Não teime!

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Hoje em dia, todos estudámos fisiologia de voo. Mas este aspecto da ansiedade não é praticamente abordado. Mas o facto é que voar exige bastante mais do QUE PARECE.

Pode-se e deve-se gozar o voo. Mas dito isto, a concentração tem que ser elevada. E se porventura, o piloto tem “problemas” na sua vida pessoal e/ou profissional que lhe “roubem” a capacidade de concentração, é preferível não voar.

Muito mais se poderia dizer, mas para QUEM VOA, o que acima descrevi já é o suficiente para “vos pôr a pensar”….

No próximo artigo, “regresso” a situações de carácter anedótico, que foram acontecendo… o próximo chamar-se-á “ Incidente na Ria de Aveiro”.

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Que 2016 seja um ano EXCELENTE. BONS VOOS E MELHORES ATERRAGENS!

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Pedro Gomes.  5 de Janeiro de 2016.

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